São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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SEQÜÊNCIA DE DESCOBERTAS PALEONTOLÓGICAS FEITAS POR PESQUISADORES CHINESES REVELA NOVOS LAMPEJOS SOBRE COMO SURGIU A ARTE DO VÔO ENTRE OS PÁSSAROS PRIMITIVOS

GANHANDO OS ARES

Zongda Zhang
Reconstrução de um embrião de ave com desenvolvimento precoce, originário do Período Cretáceo, na China


Ricardo Bonalume Neto
da Reportagem Local

Como descobriram os múltiplos pioneiros da aviação, cerca de um século atrás, ou você voa, ou não sai do solo. Por mais bonito que seja o modelo do seu avião, a prova de fogo é sair do chão, voar e voltar. Algo parecido aconteceu com os seres vivos. Quais começaram a ser capazes de voar, e como, e quando?
Uma seqüência notável de fósseis descobertos na China lança luzes sobre esse momento da evolução biológica.
Apesar das críticas dos fanáticos religiosos, existem boas provas da gradual evolução das formas dos seres vivos. Entre um ancestral e seus descendentes existentes hoje podem ter havido formas intermediárias. Uma "meia asa" poderia não servir para voar, mas poderia ter outra função. E, no fim das contas, um animal capaz de vôo surgiu no planeta. Se adaptado, deixou descendentes. Mesmo hoje existem aves incapazes de vôo, apesar de terem anatomia em quase tudo semelhante à de suas colegas voadoras.
Os fósseis chineses da Província de Liaoning têm dado suporte à teoria que afirma que os pássaros modernos descendem dos dinossauros. Em edição recente da revista científica britânica "Nature" (www.nature.com) se revelou o achado de um fóssil de filhote de dinossauro preservado durante o sono com a posição típica de uma ave.
Também foram achados ali fósseis de dinossauros com penas, mas incapazes de vôo. As penas teriam alguma outra função -controle de temperatura do corpo, por exemplo. Mas sua existência criou as condições para um descendente usá-las para outra coisa -como voar.
O pássaro mais antigo conhecido é o Archaeopteryx, que aparentemente não voava tão bem e parecia um híbrido de dinossauro com ave desenhado por uma criança alucinada.
O Archaeopteryx certamente era mais capaz de voar do que os dinossauros com penas -com uma exceção, um pequeno dino, o Microraptor, capaz de planar como um esquilo moderno (e que tinha um tamanho parecido).
O dino planador usava as penas nos seus quatro membros para facilitar o salto de galho em galho -algo que os cientistas batizaram, entre aspas, de estágio das "quatro asas". Há quem afirme que o Archaeopteryx também usava uma propulsão semelhante.
Outra descoberta chinesa revelada recentemente lança ainda mais luz sobre esse possível estágio, feita por Fucheng Zhang e Zhonghe Zhou, do Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia da Academia Chinesa de Ciências.
Os dois acharam um fóssil -descrito na mesma revista "Nature", na edição de quinta-feira passada- de um pássaro com penas em grande quantidade nas pernas, uma característica mais parecida com as "quatro asas" do Microraptor do que com as aves modernas, com sua cauda aerodinâmica.
Já as penas de cauda dos pássaros fósseis são bem mais curtas e não teriam o mesmo desempenho em contribuir para a sustentação do animal no ar.
Mesmo hoje, dizem os autores, existem aves que utilizam detalhes estruturais das pernas para efeitos durante o vôo, como uma "brecada" mais rápida.
As penas nas pernas do novo pássaro fóssil, ainda sem nome, são relativamente mais compridas do que as do Archaeopteryx e aparentam ter melhor aerodinâmica.
"A capacidade de vôo desses pássaros antigos tem sido geralmente reconhecida, embora não fosse provavelmente tão forte como nos pássaros modernos", dizem os autores do estudo. "As fracas características aerodinâmicas das penas nas pernas do novo pássaro poderiam ter ajudado a cauda pouco desenvolvida em manobras durante o vôo", afirmam os dois pesquisadores chineses.
Os pesquisadores não publicaram a idade do fóssil além de citar que são do início do período geológico conhecido como Cretáceo (65 a 136 milhões de anos atrás), mas os que costumam ser achados nas formações da Província de Liaoning datam de 124 a 145 milhões de anos atrás.
O Microraptor e o novo fóssil foram apenas duas das descobertas interessantes dessa Província chinesa. Um dos achados mais espetaculares é um dinossauro considerado ancestral do grande carnívoro Tyrannosaurus rex. O Dilong paradoxus é uma curiosa versão ancestral e emplumada do famoso dino matador.
A descoberta mais nova foi publicada anteontem na revista "Science" (www.sciencemag.org) também por Fucheng Zhang e Zhonghe Zhou: um fóssil de pássaro, com penas, de 121 milhões de anos de idade, possivelmente a ave mais antiga fossilizada antes do nascimento.
O embrião estava preservado dentro de uma estrutura oval com cerca de 35 mm por 20 mm, embora não se tenha conseguido notar a existência de uma casca de ovo. A posição do fóssil lembra a de um embrião em estágio tardio de desenvolvimento, mas ainda não perto de sair do ovo.
O embrião de ave fossilizada apresenta características que lembram as aves primitivas como a que os mesmos pesquisadores descreveram no periódico "Nature" um dia antes, conhecidas como enantiornitinas.
O caráter primitivo do embrião também aparece na ausência de um "dente", uma estrutura na parte de cima do bico usada pelas aves de hoje para quebrar a casa do ovo, que desaparece logo depois do nascimento.
O aspecto de "elo perdido" do fóssil também está presente no fato de ele ser "precoce", isto é, de nascer razoavelmente bem desenvolvido, completo com penas e já capaz de se mover e de se alimentar independentemente. Os cientistas afirmam que esse tipo de ave surgiu antes de outras mais vulneráveis, nas quais os filhotes nascem praticamente pelados, com cérebros menores e menos capazes de se virar no mundo primitivo.
Segundo Fucheng Zhang e Zhonghe Zhou, há estudos que indicam que certos dinossauros também se desenvolviam desse modo "precoce", justamente de espécies consideradas parentes próximas dos pássaros.
Já faz algum tempo que os pesquisadores associam as aves aos dinossauros. Ainda se discute se os dinos teriam sangue frio (como os répteis de hoje, que não regulam a temperatura do corpo) ou sangue quente; talvez os mais próximos entre eles tenham tido sangue quente.
E já faz algum tempo que os fósseis chineses têm trazido novas e importantes contribuições para o debate. A propósito, se o tipo de descoberta que foi revelado nas duas últimas semanas puder servir de termômetro, novos achados espetaculares certamente estão no horizonte.


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