São Paulo, domingo, 25 de março de 2007

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Saúvas com saúde

Estudo sugere que formigas da cidade de São Paulo já estão adaptadas ao efeito da ilha de calor urbana

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Estudo sobre a saúva (acima) pode ajudar a esclarecer como as espécies reagem ao aquecimento


IGOR ZOLNERKEVIC
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

C om verões cada vez mais quentes, está difícil trabalhar em São Paulo. A menos que você seja uma saúva, claro. Formigas que habitam a zona urbana da metrópole suportam uma temperatura de 42C por três horas e meia antes de "desmaiarem". Elas superam em mais de meia hora as saúvas de fora do limite urbano, concluiu uma equipe internacional de cientistas.
Para a experiência, o grupo integrado por Carlos Navas e Pedro Ribeiro, da USP, e mais quatro colegas atravessou uma jornada infernal -em mais de um sentido. Primeiro, eles passaram um dia inteiro capturando formigas no terreno do Instituto Butantan, no campus da USP, e ao longo da rodovia dos Bandeirantes. Voltaram à noite ao laboratório, com mais de 250 saúvas em potes de plástico. Em seguida, vararam a madrugada de olho nelas, dentro de uma sala especial, com temperatura mantida em 42C.
"Tinha muito suor naquela sala", lembra-se Navas. Os pesquisadores evitaram a própria desidratação e a das formigas. Revezaram-se em turnos de meia hora, tomando isotônicos. Dentro de pires sobre um balcão, as saúvas distribuíam entre si, por meio de uma espécie de "beijo", a água de algodões molhados. Hidratados, os insetos sucumbiam apenas por causa do calor.
Os biólogos contaram quanto tempo demorava para as saúvas pararem de andar, recolherem as patas e ficarem imóveis, de pernas para o ar. Além disso, observaram a resistência das formigas ao frio. Enterraram os pires com os insetos em gelo por 20 minutos, deixando-os em "coma". Depois, marcaram o tempo que demorava para se elas recuperarem. Saúvas "urbanas" e "rurais" agüentaram as baixas temperaturas do mesmo jeito.

Ilhas de calor
Muito asfalto, concreto e pouco verde fazem com que as grandes cidades retenham muito do calor que produzem. A temperatura na selva de pedra pode ser até 10C maior que fora dela. É o que se chama de ilhas de calor. "As ilhas de calor urbanas são desconhecidas de uma perspectiva biológica", comenta Raymond Huey, da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, especialista em biologia termal que não participou do experimento. "O artigo abre uma nova área de pesquisa", acrescenta.
O estudo, publicado dia 28 de fevereiro na revista científica "PLoS One" (www.plosone.org), é um dos primeiros a observar como as ilhas de calor afetam o desempenho térmico dos animais. Os biólogos costumam procurar diferenças de temperatura naturais, estudando populações da mesma espécie em altitudes e latitudes diferentes, por exemplo.
"O aumento de temperatura provocado pela urbanização é recente", explica o colombiano Navas. Isso significa que a melhora no desempenho das formigas também é recente e pode ter duas causas distintas: evolução ou aclimatação.
As saúvas vivem em quase todo território nacional, enfrentando climas diversos. Pode ser que a facilidade natural delas de se aclimatar esteja por trás dos resultados da experiência. Pode ser, também, que a pressão das altas temperaturas sobre as formigas urbanas fez com que sobrevivessem somente aquelas com os genes mais apropriados.
As formigas -que, diferentemente dos humanos, não controlam a temperatura de seu corpo pequeno e andam próximas ao chão - trabalham à noite, em geral. Às vezes, porém, elas precisam atravessar caminhos sob o sol do meio-dia, que chega a aquecer o solo até mais de 45C. A resistência maior ao calor torna as formigas urbanas mais eficientes.
Para tirar a dúvida, Ribeiro sugere como próximo passo criar juntas colônias de saúvas com rainhas originárias tanto de dentro quanto de fora da cidade em um mesmo ambiente controlado. Se houver diferenças genéticas, as saúvas tolerarão o calor de maneiras diferentes, conforme a origem de sua rainha.

Aquecimento global
"A pesquisa ajuda a entender como os animais reagem às mudanças do clima global", diz Michael Angilletta, da Universidade Estadual de Indiana, EUA, principal autor do artigo.
Navas observa que coisas parecidas podem estar acontecendo com os anfíbios da caatinga. Na juventude, algumas espécies de sapo são ativas durante o dia, pulando na areia a 40C. "Isso já é inacreditável para um sapo", diz Navas. "Esses animais estão muito perto de sua tolerância máxima ao calor. O que acontecerá se a temperatura aumentar?"
"As observações em várias partes do mundo estão formando uma história de como os animais se adaptam ou não às mudanças climáticas", conta Navas. "Se constata uma grande diferença no que as várias espécies conseguem fazer." Essa informação permite que os cientistas avaliem quais espécies permanecerão ou não em seus nichos originais com o aumento previsto de até 4C na temperatura da Terra até 2100.
Segundo Navas, entretanto, os estudos do impacto do aquecimento global em animais silvestres estão atrasados, se comparados, por exemplo, a estudos de agricultura sobre mudanças em áreas de cultivo.


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