São Paulo, domingo, 25 de julho de 2004

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Ciência em Dia

A volta da gosma cinza

Marcelo Leite
colunista da Folha

Há idéias infecciosas, que parecem se auto-reproduzir e se propagar de cérebro em cérebro, ou de escrito em escrito (Richard "Gene Egoísta" Dawkins tentou batizá-las como "memes", mas não se pode dizer que o neologismo tenha virado coqueluche). Uma delas, muito persistente, é a que resume um mecanismo similar à reação em cadeia na imagem da gosma cinza ("gray goo", em inglês), uma multidão de robôs auto-replicadores nanoscópicos que cobriria a Terra em dias ou semanas, em um pesadelo de ficção científica.
(Quem foi criança na década de 60 não deixará de se lembrar de um filme horrível, em todos os sentidos: "A Bolha Assassina" -que era vermelha, tipo bordô. O livro "Presa", de Michael Crichton, explora o mesmo motivo fagocitante, mas até que não foi difícil escapar dele.)
A epidemia vinha provocando uma reação forte na sempre débil opinião pública, com uma farta produção de anticorpos até contra a idéia geral da nanotecnologia (manipulação e fabricação de dispositivos na escala de milionésimos de milímetro). Já aparecia no radar alérgico dos adversários da biotecnologia, por exemplo. O próprio inventor da idéia decidiu vir a público para defender essa modalidade imaginária de engenharia, que estava mal das pernas antes mesmo de começar a caminhar.
O homem se chama Eric Drexler e aparentemente foi o primeiro autor a fabular sobre a gosma cinza num livro de 1986, "Engines of Creation" (Motores da Criação). Drexler, que hoje dirige o Foresight Institute (www.foresight.org), acaba de publicar com Chris Phoenix, do Centro para Nanotecnologia Responsável (www.crnano.org), um artigo que diz que nunca marchará sobre a Terra a horda de nanorrobôs auto-replicadores popularizada por ele e pelo inventor Ray Kurzweil.
O texto saiu -zero de surpresa- no periódico "Nanotechnology" (www.iop.org/EJ/journal/Nano). Seu argumento é que nanorrobôs capazes de deslanchar a gosma cinza seriam tanto desnecessários quanto ineficientes, econômica e tecnologicamente. Por via das dúvidas, ele também afirma no texto que qualquer coisa no gênero deveria ser proibida.
O primeiro argumento de Drexler é que nanorrobôs capazes de copiar a si mesmos precisariam usar biomassa ou outros materiais complexos como matéria-prima, o que seria ineficiente. Faria mais sentido projetá-los para uma fonte mais simples e homogênea de átomos, como acetona.
Também lhe parece desnecessário dotar as manufaturas moleculares de conjuntos completos de instruções, condição necessária para a auto-replicação. Mais econômico, simples e versátil seria usar um computador externo para "carregá-las" com o programa momentaneamente necessário (seriam mais úteis como máquinas com finalidades múltiplas, e não dedicadas a fazer somente cópias de si mesmas).
Por fim, tampouco faria sentido dotar as nanomáquinas de mobilidade. Para Drexler, elas ficariam confinadas dentro de um aparelho do tamanho de um periférico de computador: "E é improvável que uma máquina como uma impressora de mesa, para dizer o mínimo, se torne selvagem, se reproduza, se auto-organize e saia por aí comendo gente."
Tem lógica. Mas vírus de computador também não fazem muito sentido, nem comem gente, só que existem.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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