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ENTREVISTA
AZIM SHARIFF
A religião incentiva o comportamento altruísta
Para psicólogo que trabalha sob óptica da evolução, crença em Deus promove ajuda mútua, mas só em certas condições
Marlene Bergamo - 14.ago.02/Folha Imagem
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Uma mulher muçulmana e seu filho rezam durante cerimônia do Ano Novo muçulmano numa mesquita de Jacarta, na Indonésia
O GRANDE conflito opondo ideologias laicas e
religiosas hoje está na biologia, com o movimento criacionista tentando impor às escolas o
ensino de conceitos do Gênesis bíblico como alternativa à teoria de Darwin. Um grupo de psicólogos que trabalha numa frente menos conhecida, enquanto isso, cria controvérsia por outro motivo: eles tentam usar a evolução para explicar por que a religião surgiu. Segundo o canadense Azim
Shariff, porém, é justamente porque ela promove o bem.
RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL
Em parceira com o psicólogo
Ara Norenzayam, Shrarif publicou neste ano um estudo na
prestigiosa revista "Science".
Os dois defendem a teoria de
que a religião surgiu em sociedades humanas arcaicas porque promove a cooperação
dentro de grupos de pessoas.
Experimentos comportamentais, porém, mostram que isso
ocorre mais apenas quando o
ato altruísta contribui para a
reputação das pessoas. Em entrevista à Folha Shariff falou
sobre seu trabalho.
FOLHA - Best-sellers como os do
jornalista Christopher Hitchens e do
biólogo Richard Dawkins apontam a
religião como fonte de conflito. Seus
estudos, porém, indicam que a crença religiosa dá vantagem evolutiva
a grupos humanos, porque incentiva a cooperação. O que acontece,
então, é justamente o oposto?
AZIM SHARIFF - Eu não diria que
é o oposto. Hitchens e Dawkins
estão adotando um ângulo uniformemente negativo sobre religião. Se você procura algo
mais próximo da verdade, será
mais equilibrado. Obviamente,
não vai descobrir que a religião
é uma coisa totalmente boa, da
mesma forma que ela não é totalmente ruim. Nós mostramos
que ela promove algum bem,
mas apenas quando condições
específicas são cumpridas.
Nossa pesquisa em geral causa reação de desapontamento
tanto entre pessoas contra
quanto a favor da religião, porque ela não diz que ela é má, como Hitchens, e não diz que a religião é boa, como aqueles que
pregam suas religiões. Nós descobrimos, de fato, que a religião
incentiva o comportamento
pró-social, mas não pelas razões que as pessoas religiosas
gostariam de acreditar.
FOLHA - Vocês citam estudos mostrando que o comportamento cooperativo, pró-social da religião, existe mais quando o altruísmo ajuda a
melhorar a reputação da pessoa. Isso revela algo cínico ou egoísta?
SHARIFF - Sim, mas as as razões
conscientes que temos para
nossas ações pró-sociais são
muito limitadas. Não temos
acesso total às nossas próprias
motivações. As pesquisas das
ciências cognitivas sobre moral
apontam que normalmente
agimos por motivos egoístas.
Humanos são feitos assim.
Normas culturais não existem por motivos egoístas, mas
são egoístas da perspectiva do
grupo. Qualquer ação nossa é
motivada em certa medida por
auto-interesse. O fato de a religião cooptar esse auto-interesse não a torna pior do que qualquer outra motivação que tenhamos para fazer o bem.
FOLHA - Seu estudo dá a entender
que a crença em um Deus moral e
capaz de punir foi boa no passado
porque ajudou sociedades com uma
espécie de "vigilância" em prol da
cooperação. É isso que aconteceu?
SHARIFF - Sim, essa é a teoria
que estamos trabalhando. Antigamente, nas sociedades humanas, quando não havia grandes sistemas judiciários, a vigilância era limitada. As pessoas
tinham que monitorar a reputação de todas as outras, e era
muito mais fácil para os trapaceiros evitarem ser pegos.
O que a religião fez foi "terceirizar" toda essa vigilância para
um ser onisciente, que poderia
vigiar e punir todo mundo. A
partir de então, as pessoas não
trapaceariam, ou seriam incentivadas a não fazê-lo, porque
não teriam como escapar de
Deus da mesma forma que escondiam suas trapaças das pessoas comuns.
FOLHA - Como a psicologia evolutiva busca evidências para saber o que
aconteceu no passado, já que não
pode viajar no tempo para saber como as pessoas pensavam?
SHARIFF - É verdade que as alegações em psicologia evolutiva
são difíceis de comprovar. O
que tentamos fazer é usar evidências de diversas outras
áreas da ciência. Nós combinamos psicologia social experimental moderna com evidências antropológicas que analisam como os grupos desenvolveram crenças e rituais no passado, e se isso contribuiu para
sua durabilidade.
Nós argumentamos que sociedades que adotam crenças
em deuses poderosos costuma
ser maiores, e duram mais, você
precisa olhar para a história e
ver se ela apóia essa tese. E ela
suporta, porque você pode generalizar isso para todos os grupos ao longo do tempo.
Um estudo que mencionamos é sobre comunidades laicas e religiosas nos EUA. Descobrimos que em comunidades
religiosas, costuma durar mais
do que as comunidades laicas.
Olhando o registro histórico,
também vemos que grupos que
enfrentaram desafios para estabelecer a colaboração próxima são mais propensos a adotar crença religiosa, o que facilita esse tipo de cooperação.
FOLHA - Cristianismo, islamismo e
judaísmo cresceram por possuírem
essas características?
SHARIFF - Absolutamente, sim.
Mesmo com a maioria das religiões do mundo não possuindo
esses grandes agentes punitivos, as religiões que o possuem
têm a maioria dos fiéis. Parte
disso é pelo modo como elas
funcionam. Há outras coisas
sobre o cristianismo e o islamismo, é que são religiões profetizantes, com iniciativas de
disseminação missionária que
as permitem crescer mais rapidamente do que outras religiões. É um processo de evolução da religião.
Hoje nos EUA partes do cristianismo estão mudando de
acordo com as novas condições
sociais em que se encontram.
Veja, por exemplo, o catolicismo, que sempre teve boa parte
de sua sustentação em rituais,
em um Deus particularmente
rigoroso e no medo do inferno.
Essas coisas estão mudando na
para coisas mais alegres e em
um Deus mais amável. A razão
para isso acontecer é que os deveres punitivos da religião não
pertencem mais ela, devido aos
grandes sistemas judiciais seculares que existem hoje. E
com as religiões se tornando
mais legais com as pessoas, seu
poder de disseminação aumenta ainda mais.
FOLHA - Quando vocês explicam
religião pela seleção natural, o que
está sendo selecionado é o comportamento das pessoas ou as características genéticas que as tornam
mais propensas à crença?
SHARIFF - Eu não acredito que a
seleção genética seja especialmente forte no que se refere à
disseminação das religiões. O
que acredito é que exista um
processo de co-evolução entre
genes e cultura. Inicialmente
você tem seleção cultural nessas religiões. Alguns estudos argumentam que pessoas religiosas costumam ter mais filhos,
mas eu não acredito que haja
evidências suficientes favoráveis a isso ao longo da história.
FOLHA - Alguns sociólogos dizem
que o cristianismo lançou as bases
morais para o capitalismo. O consumismo desenfreado com presentes
de Natal é hoje um sinal disso?
SHARIFF - Li algumas coisas a
esse respeito, mas nunca estudei religiões sob aspecto da economia de mercado. É claro que
o Natal é um grande negócio.
Se, de fato, ele estimula as pessoas a se tornarem mais ligadas
a suas religiões, talvez elas fiquem mais generosas. As pessoas realmente dão presentes
às outras no Natal, mas dizer
quando isso ocorre por generosidade ou por uma cultura de
comercialismo já é mais difícil.
FOLHA - Cientistas têm reagido vigorosamente à intromissão da religião no ensino de biologia, o criacionismo. Religiosos, em contrapartida, podem questionar aquilo que
vocês estão fazendo: usar ciência da
evolução para explicar a religião?
SHARIFF - Sim. A idéia de olhar
para a religião com uma óptica
científica é uma coisa que deixa
iradas muitas pessoas religiosas mais fundamentalistas. E o
fato de estarmos usando para
isso os processos darwinísticos,
em particular, pode torná-las
duplamente iradas. É compreensível que elas fiquem assim, mas isso faz parte do fato
de que nós, psicólogos, tentamos explicar o comportamento
humano para os humanos. É
como se disséssemos "nós sabemos por que você está fazendo
isso melhor do que você mesmo
sabe". E o fato de que tratamos
especificamente de religião
certamente incomoda mais.
Tornar a religião um objeto das
ciências naturais, não é uma
coisa com a qual as pessoas religiosas se sentem confortáveis.
Mas não podemos deixar isso
nos afetar. Temos que tentar
nos comprometer com a verdade o máximo possível. Não tentamos suavizar nossa linguagem, mas não temos uma agenda específica de ateísmo a cumprir.
FOLHA - Você tem recebido muitas
cartas com ofensas?
SHARIFF - Eu não diria que são
muitas. Nós recebemos um bocado de reações negativas por
parte de pessoas religiosas, mas
muitas pessoas não-religiosas
reagiram negativamente também. O que achei interessante
foi a reação da mídia, que costuma descrever nosso estudo ou
como totalmente pró-religião
ou como totalmente contrário.
FOLHA - Como surgiu seu próprio
interesse em psicologia da religião?
Você é religioso ou nasceu eu uma
família religiosa?
SHARIFF - Fui educado como
muçulmano, mas perdi meu interesse em religião quando era
adolescente. Quando cursei a
graduação é que meu interesse
em religião ressurgiu. O que
acho que foi bom, e que me permitiu permanecer mais neutro
em relação ao assunto, é o fato
de que eu não tive um interesse
especial em religião antes. Eu
não amava religião mas também não a desprezava.
FOLHA - Você acha que a religião
serve como parte da explicação para
os conflitos no Oriente Médio? Em
seu estudo você diz que a religião favorece cooperação dentro de grupos
mas não entre um grupo e outro?
SHARIFF - O que acontece é que
hoje esses grupos de pessoas
acabam tendo contato um com
outro muito mais freqüentemente. No passado, talvez uma
pessoa só encontrasse alguém
de uma religião diferente duas
ou três vezes na vida. Mas hoje,
especialmente em lugares religiosamente diversos como o
Oriente Médio, isso ocorre
muito mais, o que gera muito
mais tensão.
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