São Paulo, domingo, 26 de julho de 2009

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Brasil passa longe de patente antártica

Pesquisadores isolam microrganismos com potencial de aplicação comercial, mas falham em atrair interesse da indústria

Micróbios polares testados podem gerar desde protetor solar até catalisadores; coleção reunirá cepas para tentar atrair setor privado

Marcelo Justo/Folha Imagem
Os cientistas Leandro Andrade, 33, e Lidiane Araújo, 29, exibem
placa com bactérias antárticas no Instituto de Química da USP


CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

Era uma vez uma cultura de bactérias. Os micróbios foram coletados por um grupo de pesquisadores brasileiros na Antártida. Como se mostravam eficazes em bloquear luz ultravioleta, os cientistas acharam que eles pudessem virar a base de um novo filtro solar. Entregaram as bactérias a uma empresa nacional, que se interessou por desenvolvê-lo. Mas aí o gerente da empresa foi demitido e a cepa foi jogada fora.
Terminou assim, na lata do lixo, a história daquilo que poderia ter sido a primeira patente brasileira de um produto derivado da biodiversidade antártica. Há quase 30 anos pesquisando no continente, o país nunca logrou atrair o interesse da indústria para o potencial de aplicação dessas criaturas.
As condições extremas que os seres antárticos precisam encarar fizeram com que eles desenvolvessem adaptações evolutivas potencialmente interessantes para a indústria.
O grupo francês de cosméticos Clarins, por exemplo, utiliza uma alga antártica num creme antirrugas. A Unilever patenteou um espessante à base de uma proteína anticongelante de bactéria polar para manter sorvetes macios. A empresa farmacêutica neozelandesa ZyGEM obteve de uma bactéria antártica um composto que extrai DNA de amostras pequenas, de grande potencial em biotecnologia. E proteínas de peixes antárticos já são comercializadas pela companhia canadense-americana A/F Protein Inc. para preservar materiais biológicos -em cirurgias de transplante, por exemplo.
O Japão e os EUA são os líderes na corrida da bioprospecção ("garimpagem" biológica) antártica, mas países como Coreia do Sul, Chile, China e Índia também estão no páreo. O Brasil não integra essa lista.
"Quanto o Brasil já gastou em bioprospecção? Todo mundo no país tem coleções de organismos com propriedades interessantes, mas não tem indústria que venha bancar depois o desenvolvimento de produtos", queixa-se a microbiologista Vivian Pellizari, do Instituto Oceanográfico da USP.
Há uma década pesquisando a microbiota da Antártida, Pel-lizari e seus colegas já encontraram de tudo: micróbios capazes de degradar petróleo, bactérias pigmentadas resistentes a ultravioleta e até mesmo bactérias com "ímãs" embutidos, de potencial interesse para a indústria eletrônica (leia texto abaixo, à direita).
Foi ela quem entregou à empresa brasileira a promissora cepa de micróbios que poderia ter virado um novo protetor solar -mas que tornou-se, no final, mais um caso exemplar de como a inovação tecnológica não decola no Brasil.

Banco de micróbios
Impulsionados pelo Ano Polar Internacional, encerrado neste ano, Pellizari e seus colegas resolveram fazer um esforço conjunto para atrair o setor privado. Em setembro, eles inauguram um banco de microrganismos antárticos dentro da CBMAI, uma coleção de microrganismos de interesse para o ambiente e a indústria que funciona na Unicamp.
Trata-se de um depósito climatizado onde os micróbios são criados em tubinhos, já pré-selecionados de acordo com sua atividade.
Entre as candidatas a integrarem o banco estão duas bactérias estudadas pelo químico Leandro Andrade, também da USP. Ele vasculha o solo polar em busca de enzimas catalíticas, ou seja, capazes de acelerar reações químicas.
Uma dessas reações é a conversão de álcool em cetona, usada na fabricação de medicamentos. Substâncias em uso hoje catalisam-na sob temperaturas altas -de até 40C. Os micróbios antárticos mantidos por Andrade em uma geladeira em seu laboratório fazem o trabalho à temperatura ambiente.
"Você economiza 20 C", diz o cientista. Como energia é dinheiro, ele diz acreditar que suas enzimas catalisadoras serão um sucesso comercial. Isso daqui a dois anos pelo menos, quando ele tiver isolado as enzimas e desenvolvido um processo patenteável (organismos não podem ser patenteados) para mostrar a uma empresa.
"Se eu quiser que um industrial venha, eu preciso entregar a receita pronta", conforma-se, emendando que o Brasil é o único país que ele conhece onde o ônus da pesquisa e desenvolvimento de produtos ficam com a universidade.
"Mas o Brasil está avançando, vai ficar bom", anima-se. "Em uns 20 ou 30 anos."
Se a situação de quem quer produzir riqueza a partir de biodiversidade antártica é ruim, a de quem trabalha com bioprospecção de biota nacional não é muito melhor.
Em seis anos desde sua criação a CBMAI até hoje não teve nenhum produto desenvolvido a partir de um dos 1.014 fungos, leveduras e bactérias nela depositados. "O desenvolvimento de produtos no Brasil está travado por causa da legislação atual sobre coleta, acesso e remessa de material genético [Medida Provisória 2.106, de 2001], que é extremamente cartorial", disse à Folha a curadora da coleção, Lara Durães Sette. O Ministério do Meio Ambiente, que regulamenta esse acesso, defende-se dizendo que houve "avanços consideráveis" na regulamentação da MP. O último foi uma orientação técnica expedida em 2008 que, segundo o MMA, mudou a classificação de pesquisas de bioprospecção, acelerando a concessão de autorizações.


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