São Paulo, domingo, 26 de julho de 2009

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Ciência sombria

Grupo que usa equações da física para investigar a economia tenta validar seu método com nova previsão

RICARDO MIOTO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Importar equações da física para usá-las na economia parece uma ideia estranha, de despertar desconfiança. Funciona mesmo? Os econofísicos, cientistas que seguem essa linha, parecem dispostos a provar que sim. Para isso, acabam de lançar uma previsão que desafia economistas clássicos descrentes da nova onda: uma bolha especulativa em crescimento na principal bolsa de valores chinesa, Xangai, vai estourar, no máximo, amanhã.
O autor da previsão, Didier Sornette, físico do Instituto Federal Suíço de Tecnologia (onde estudou Albert Einstein), não é futurólogo de primeira viagem. Em 2005, ele previu que a bolha imobiliária dos EUA estouraria no meio de 2006. Não errou. Apesar de a crise só ter vazado para o resto da economia em 2008, os preços das casas começaram a cair dois anos antes.
A bolsa de Xangai subiu 65% só neste ano e continua ladeira acima. É um crescimento artificial, especulativo, dizem os pesquisadores. Eles não são os primeiros a gritar que esse crescimento vai acabar. Mas suas equações se destacam pela coragem de dizer que essa bonança não passa de amanhã.
Se há uma coisa que físicos sabem fazer é criar modelos matemáticos. Ou seja, escrever equações para explicar o Universo ou o núcleo de um átomo. A econofísica faz o mesmo, mas com o movimento da bolsa.
Sornette ressalta que "o que nós estamos prevendo é o fim da bolha. Pode ser um crash ou uma queda lenta. Mas o nosso ponto é que ela vai acabar".

Manteiga e cerveja
Físicos aparentemente gostam de ser físicos. Ernest Rutherford, pai da física nuclear, um dia disse que "ciência ou é física ou é coleção de selos". Wolfang Pauli, quando sua mulher o deixou, lamentou só uma coisa: "Mas por um químico?"
Essa fé na superioridade da metodologia da física talvez tenha estimulado essa ciência a se intrometer em outras áreas, como a química e a biologia. Francis Crick, codescobridor da estrutura do DNA, era físico. Foi só a partir dos anos 1990, porém, que físicos partiram para cima da economia.
A econofísica apregoa que, se a ciência consegue entender, digamos, as complicadas interações entre temperatura, umidade e pressão atmosférica para fazer previsões sobre o clima, nada a impede de fazer o mesmo com a economia.
Imagine o preço de um pote de manteiga. A fábrica produz sempre a mesma quantidade. Se o preço for muito alto, sobrarão potes nas prateleiras. Se for muito baixo, faltarão potes e o empresário deixará de ganhar dinheiro. O preço, então, é o ponto de equilíbrio.
Mas a física também trabalha com conceitos assim. Enquanto você estiver segurando a sua lata de cerveja, ela vai esquentar. A temperatura da sua mão é constante. Quando a lata atingir essa temperatura, ela terá atingido o equilíbrio térmico.
A questão é que nem todos os sistemas são tão simples como esses. O empresário poder querer mudar a quantidade de potes que produz. Concorrentes podem diminuir sua margem de lucro por um tempo para ganhar mercado, mesmo ganhando menos. As pessoas podem trocar manteiga por margarina. E se um boato se espalhar dizendo que manteiga causa doenças graves?
Muito mais complexo do que administrar uma fábrica de manteiga é compreender o mercado de ações e os movimentos das bolsas. É o que dizem estar fazendo os econofísicos do grupo de Sornette.

De qualquer jeito
Mas, assim como no clima, sempre haverá incerteza. Ainda porque a economia, em última análise, se baseia em decisões de indivíduos. E pensamentos podem mudar de direção bem mais rapidamente do que massas de ar.
Mais: os modelos supõem que os agentes econômicos sempre tomam as decisões que maximizam seus ganhos. Mas humanos nem sempre agem racionalmente. E é impossível colocar a intuição nas equações.
Renato Vicente, físico da USP, diz que não é possível afastar nem mesmo a possibilidade de a nova previsão do grupo de Sonette "ocasionar uma sequência de vendas de ações na China, o que levaria a uma profecia autossatisfeita".
"Previsões assim são muito difíceis de fazer. Ainda que os autores tenham evidências suficientes para crer que a valorização é uma bolha, é difícil acreditar na precisão da data", diz Rafael Calsaverini, doutorando em econofísica da USP.
"O próprio tema econofísica é meio maldito. Quando uma área dessas vira moda, o pessoal começa a fazer a coisa de qualquer jeito. Aí tem um monte de bobagem", diz Vicente.
Não que economia fosse uma área desprovida de equações até a chegada dos físicos, claro. O Nobel da Economia de 1997, por exemplo, foi concedido a um trabalho bastante matemático que já flertava com a econofísica. Mas a sede quantitativa dos físicos que estudam economia traz resultados inéditos.

Física para banqueiro
Nas faculdades de física, alunos enchem os anfiteatros nos seminários sobre econofísica.
Alguns estão apenas curiosos, outros querem pesquisar o assunto, alguns querem saber se isso vai fazer com que possam ter carros importados.
"Hoje, muita gente já entra em física pensando em ir trabalhar em bancos ou fundos de investimento", diz Vicente. "Muita gente está indo pro mercado ainda na graduação."
São os "quants", corruptela de "analista quantitativo", que se proliferaram especialmente depois do ano 2000. As suas contas -tanto na calculadora quanto no banco- até podem impressionar, mas não evitaram a crise financeira atual.
E, para mostrar que não é de hoje que físicos estudam coisas que originalmente não eram física, vale dizer que Rutherford acabou ganhando, em 1908, o Nobel de Química, uma espécie de troféu máximo da filatelia - ao menos na cabeça dele.


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