São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2007

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Cozinhando Katrinas

Proponente da ligação entre furacões e efeito estufa diz que lição de 2005 foi esquecida e que Nova Orleãs deveria virar campo de golfe

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

A temporada de furacões de 2007 começou em grande estilo: o primeiro do ano, Dean, atingiu o México na última segunda-feira como uma tormenta de intensidade 5. É a mesma potência do Katrina, que em 2005, quando arrasou Nova Orleãs, era considerado uma raridade. É melhor o mundo ir se acostumando, avisa o climatologista neozelandês Kevin Trenberth. Não só a temporada de 2007 será acima da média como a própria média da intensidade dos furacões subiu. Agradeça ao aquecimento global. Trenberth, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica dos EUA, em Boulder, Colorado, foi o primeiro pesquisador a prever a ligação entre mares mais quentes e tormentas mais intensas. Em entrevista à Folha, ele diz que a região do Caribe e do sul dos EUA parece não ter aprendido a lição do Katrina: "Há muitas construções e muita gente em locais de risco", afirma. "Com a elevação do nível do mar, cedo ou tarde vai ocorrer outro desastre". Diz também que está preocupado com os rumos da reconstrução de Nova Orleãs. Partes da cidade que estão abaixo do nível do mar, raciocina, deveriam virar "um campo de golfe".
 

FOLHA - O primeiro furacão da temporada de 2007 foi uma tempestade de intensidade máxima. Vocês já esperavam por isso?
KEVIN TRENBERTH
- A previsão no início desta temporada era de uma temporada mais ativa que o normal. E, embora a temporada tenha demorado para começar, esta é a época do ano na qual a atividade começa a recrudescer. Até o mês passado, a principal ação nos trópicos estava no oceano Índico, associada a chuvas muito fortes na Índia e na China. Isso implica menos atividade no Atlântico.
Agora o Índico melhorou, o que prepara o cenário para mais ação no Atlântico.

FOLHA - Nós tivemos uma temporada de furacões intensa em 2005, uma mansa em 2006 e agora em 2007 algo inteiramente diferente parece estar acontecendo. Como é possível depreender um padrão ou tendência disso tudo?
TRENBERTH
- A variabilidade natural é enorme, mas há tendências subjacentes. Essas tendências são melhor capturadas pela temperatura global da superfície do mar. A temperatura global do mar subiu 0,6C, e isso em geral revigora toda a convecção tropical. E um furacão ou ciclone tropical geralmente é uma coleção de tempestades, então o potencial para eventos mais intensos está lá simplesmente porque o conteúdo de calor do oceano e a temperatura da superfície do mar estão mais altas. Mas há uma competição entre os oceanos para onde isso vai acontecer. Se acontecem tempestades em uma dada região do globo, essa atividade fica suprimida em outras.

FOLHA - Um estudo seu de 2006 mostra que só é possível explicar a violência da temporada de furacões de 2005 quando se incluem os efeitos do aquecimento global. Mas, neste ano, um outro estudo, que ganhou ampla divulgação, afirmou que o aquecimento aumenta a tesoura de vento [mudança radical de direção e ou velocidade dos ventos, que "rasga" nuvens], diminuindo a possibilidade de furacões. Em que pé está essa controvérsia?
TRENBERTH
- O artigo sobre a tesoura de vento falava de condições médias. Ele sugere muito mais atividade no Pacífico e no Índico mas diz que, por causa da mudança na tesoura de vento, haveria menos atividade no Atlântico. Isso é a média. Um ano em quatro é o que você esperaria que o Atlântico saísse desse padrão. Ainda assim, a cada quatro anos ele seria favorável a tempestades intensas.

FOLHA - O Dean não foi uma catástrofe só porque, por sorte, atingiu uma zona desabitada?
TRENBERTH
- O dano dos ventos e das ressacas é limitado em área. O que causa mais danos e não é reportado sempre são as chuvas intensas, que podem se estender por até mil quilômetros a partir do lugar que a tempestade atinge. No caso do Katrina, houve 75 milímetros de chuva até a fronteira EUA-Canadá. Eu ainda não vi uma boa avaliação dos prejuízos que o Dean causou na Jamaica.

FOLHA - Qual é, na sua opinião, a melhor maneira de lidar com a nova realidade climática do Golfo?
TRENBERTH
- A realidade é que o número de tempestades mais fortes cresceu. E as regiões costeiras, na minha visão, deveriam ter regulamentações governamentais para impedir que se construa em algumas áreas e deveria haver padrões de construção muito rígidos. Se você faz uma casa alta o suficiente, em palafitas ou algo assim, você pode fazer um prédio resistente a um furacão de categoria 4 (embora dificilmente sobreviveria a um de categoria 5). Honestamente, há muitas construções e muita gente em locais de risco. É um absurdo. Na minha visão pessoal, a reconstrução de parte de Nova Orleãs não faz sentido. Com a elevação do nível do mar, cedo ou tarde vai ocorrer outro desastre. Não faz sentido, mas é o que está acontecendo. As pessoas estão se colocando em risco.

FOLHA - O sr. está dizendo que Nova Orleãs está sendo reconstruída do mesmo jeito?
TRENBERTH
- Não, não é isso. É que qualquer coisa que seja construída abaixo do nível do mar hoje está vulnerável a desastres no futuro. Toda a área tem afundado nos últimos anos. Partes dela, como o bairro francês, parecem estar bem, mas outras áreas estão abaixo do nível do mar o suficiente para serem inundadas outra vez numa tempestade.

FOLHA - Então essas área deveriam ser abandonadas?
TRENBERTH
- Não abandonadas, mas podiam ser transformadas em um campo de golfe ou algo que não importe muito (risos). Você não vai querer pôr ali estruturas importantes, como escolas ou coisas assim.

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