São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2007

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+ Marcelo Leite

O Brasil nasceu barroco



A miragem do paraíso biotecnológico serviu para manter vivo o zumbi da bioparanóia


A biodiversidade, a diversidade biológica entendida em geral como número e variedade de espécies vivas, é o lado barroco da natureza. Exuberância pura, mas de pouca serventia.
O conceito do ecólogo espanhol Ramon Margalef foi apresentado de modo espirituoso por Thomas Lewinsohn, ecólogo da Unicamp, na mesa-redonda "As Promessas da Biodiversidade Brasileira" realizada quarta-feira naquela universidade. É claro que, para Lewinsohn, a biodiversidade não é inútil -a questão era debater se ela é tão útil quanto todos desejariam.
Não é, ao menos não numa concepção biotecnológica estreita de utilidade. A idéia popular de que a Amazônia entesoura bilhões de dólares em fármacos desconhecidos, por exemplo, sofreu um nocaute técnico. Incapaz até agora de produzir um medicamento demolidor (os "blockbusters" de que as grandes irmãs farmacêuticas andam tão carentes), esse mito vive das glórias do passado.
Não se descarta que um programa de bioprospecção focado tope ali, em meio a tanta ganga e pirita orgânica, com uma pepita do quilate do taxol, antitumoral obtido originalmente, décadas atrás, do arbusto teixo-do-pacífico. Por ora, a miragem do paraíso biotecnológico serviu para manter vivo o zumbi tonto da bioparanóia.
O medo pânico da biopirataria deu origem a uma bateria de regulamentos para impedir a saída de material e informação (genes) biológicos do país.
Criada para barrar piratas estrangeiros, essa burocracia prejudicam mesmo os cientistas brasileiros. Não só os que trabalham com bioprospecção, mas qualquer um que precise coletar e transportar espécimes e amostras.
Com isso, complica-se ainda mais um trabalho para lá de complicado: começar a conhecer a biodiversidade brasileira, identificando e descrevendo espécies que aqui vivem. Sim, apenas começar. Porque terminar não estaria no horizonte das próximas gerações, nem, talvez, desta civilização.
O tamanho da encrenca foi estimado por Lewinsohn nos dois volumes de "Avaliação do Estado do Conhecimento da Biodiversidade Brasileira" (www.mma.gov.br/ estruturas/chm/_arquivos/Aval- Conhec-Vol1.pdf). Estima-se que haja 1,8 milhão de espécies no país -mas também podem ser 1,4 milhão, ou 2,4 milhões. Ninguém sabe ao certo.
Tampouco se conhece quantas espécies há no planeta, talvez 13,6 milhões. Ou 3,6 milhões. Quiçá 111,7 milhões. Fato é que o quinhão brasileiro deve estar na casa de 1/8 do total mundial, uma megadiversidade biológica.
Com a capacidade científica brasileira e muito otimismo, a tarefa de mapear essa riqueza duraria 800 anos.
Agora, se você não é daqueles que acreditam na eficiência da pecuária senatorial, na capacidade técnica da Anac e na plumagem republicana de tucanos, dois milênios seriam aposta mais razoável.
Outra maneira de formular a questão é dizer que a meta não será cumprida. Talvez nem precise mesmo. É da natureza das espécies desaparecer, sem o que não haveria evolução biológica. O busílis está no ritmo da extinção, que aumenta de maneira exponencial com a destruição de habitats.
Não é o caso de concluir, por outro lado, que mais recursos precisam ser carreados para o estudo da biodiversidade só porque as espécies estão desaparecendo. Elas devem ser estudadas e preservadas também por seu valor intrínseco, não só pela utilidade que possam manifestar para o homem.
Viva o barroco.

MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net) . E-mail: cienciaemdia@uol.com.br

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