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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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Obra de Leslie Alan Horvitz tenta atribuir revoluções na ciência a iluminações de indivíduos geniais, mas enfrenta dificuldades com as invenções coletivas

Os lampejos do gênio

Salvador Nogueira
da Reportagem Local

De onde vêm os impulsos que, de uma hora para outra, produzem as revoluções científicas? O mais novo livro da escritora Leslie Alan Horvitz, "Eureca!", tenta apresentar uma resposta com uma série de análises de casos reais.
Com uma narrativa envolvente (Horvitz já escreveu vários livros de ficção), o leitor tem a chance de conhecer alguns dos momentos mais interessantes da história da ciência e da tecnologia. Os 12 capítulos apresentam, cada um, um momento decisivo, em que a participação de um dado pesquisador ou teórico foi fundamental. A escolha dos protagonistas é interessante, por mesclar as velhas e manjadas figuras da ciência, como Isaac Newton, Albert Einstein e Charles Darwin, a desconhecidos do público, como Philo Farnsworth e Friedrich Kekulé. No meio do caminho, estão figuras de quem ouvimos falar de passagem na escola e depois, geralmente, nunca mais. Exemplos dessa categoria são Alfred Wegener e Dmitri Mendeleiev.
O discurso inerente a cada uma das narrativas é a noção de que a grande maioria das descobertas e sacadas científicas fundamentais surge a partir de lampejos, momentos de sublime distração, quase instantes de pura clarividência. É romântico, dá um bom livro, dá ao cientista um ar de iluminado ou escolhido, mas, sinceramente, fora do aspecto literário, não convence muito.
O tom de Horvitz é claro desde o primeiro parágrafo: "O progresso científico vem por espasmos: anos de trabalho árduo em um laboratório podem se revelar infrutíferos, mas um passeio contemplativo no campo pode produzir uma descoberta revolucionária surpreendente."
De todos os casos relatados ao longo do livro, o que talvez melhor se encaixe na visão romântica de Horvitz seja o de Alexander Fleming, que descobriu a penicilina por simples descaso -ele esqueceu algumas de suas amostras sobre a bancada do laboratório e, quando voltou, descobriu que haviam sido contaminadas por mofo, que por sua vez produzia uma substância bactericida.
"Serendipity" em seu melhor estilo, sem dúvida alguma. A palavra inglesa não tem equivalente em português e denota a capacidade de induzir a ocorrência de situações reveladoras de forma não-intencional (a tradutora Marcia Epstein Fiker se sentiu à vontade com o neologismo "serendipidade").
Mas a maior parte das histórias narradas em "Eureca!" está muito longe de ter seu ponto focal em lampejos e frutos do acaso. E em alguns casos a tentativa de reforçar essa idéia incorre em erros e raciocínios perigosos, como o de supor que talvez haja verdade na velha lenda de que Newton teria sido inspirado pela queda de uma maçã para conceber sua venerável teoria da gravitação.
Um conceito muito mais sólido e coerente para explicar o surgimento das descobertas científicas em seu tempo é o designado pelo termo alemão "Zeitgeist" -o espírito de uma dada época (aqui a tradutora não se arriscou a aportuguesar). Embora Horvitz reconheça a importância dessa idéia para explicar como vários cientistas foram capazes de chegar às mesmas conclusões, ao mesmo tempo e independentemente, sua narrativa parece se esforçar para dar pouco destaque a isso, enfatizando a importância de seus protagonistas escolhidos. Alfred Russel Wallace se torna uma pequena passagem na grandiosa história de Charles Darwin em sua busca "serendipitosa" por uma teoria satisfatória da evolução.
Apesar disso, o aspecto agradável e leve da leitura tem seus méritos e traz para perto do público um pouco do raciocínio e do esforço envolvidos na produção do conhecimento científico. Embora todos os grandes gênios de Horvitz pareçam, a princípio, ser indivíduos dotados de formação acadêmica totalmente não-convencional, fica claro que não seria possível realizar o que fizeram se não conhecessem profundamente o que veio antes deles. Nesse embalo, o livro agarra a chance de trazer à tona sagas obscuras, como a que levou à criação da televisão.
As pessoas sempre se perguntam por que algumas invenções, por mais importantes que sejam, não acabam associadas a um criador. Talvez seja porque realmente não exista um único inventor capaz de ser coroado como o "dono" daquele conceito. Embora Horvitz tente apresentar Philo Farnsworth como o homem por trás da televisão, sua narrativa deixa muito clara a noção de que o americano foi só o inventor que encontrou a última peça de um enorme quebra-cabeça, cuja solução seria impossível sem os elementos concebidos por outros.
Com o espírito preparado para questionar descrições hollywoodianas da ciência, o leitor pode tirar grande proveito de "Eureca!". Ele não só apresenta uma qualidade didática sempre apreciável em livros de divulgação, como pode servir de inspiração para os que talvez não vejam hoje na ciência uma atividade com muito espaço para lances criativos.
De resto, só é de estranhar que a charmosa história que deu origem à expressão-título não estar lá. O geômetra grego Arquimedes, do século 3º a.C., descobriu que poderia diferenciar uma massa de ouro de outra feita de outro material a partir de sua densidade, que pode ser aferida afundando as massas numa banheira e medindo o deslocamento de água. Ao sacar isso, teria saído do banho para a rua, nu, gritando pelas ruas de Siracusa: "Eureca! Eureca!" (Achei! Achei!)
Põe serendipidade nisso.


Eureca!
de Leslie Alan Horvitz
224 págs. R$ 29,00
A partir da segunda semana de novembro. Editora Bertrand Brasil (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, tel. 0/xx/21/2585-2070)


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