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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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Ciência em Dia

Linhas tortas e erradas

Marcelo Leite
editor de Ciência

Duas semanas atrás, foi comentada aqui a retratação de um artigo científico na revista "Science" que criara alarmismo um ano antes quanto à possibilidade de que a droga recreacional ecstasy causasse mal de Parkinson. Parece que a moda está pegando: agora é a não menos prestigiada "Nature Medicine" (www.nature.com/naturemedicine) que vem publicar uma dessas humilhantes admissões de erro e culpa. O detalhe é que, entre uma coisa e outra, transcorreram 42 meses, e não 12, como na "Science".
Em ambos os casos, é tempo demais. Quem ainda vai se lembrar da notícia auspiciosa sobre o câncer renal, entre as centenas que foram publicadas desde então na imprensa especializada como na leiga, para então apagá-la dos registros e da memória?
O mais provável, alertam os próprios editores da "Nature Medicine", é que o artigo continue a ser citado como pesquisa válida e apoio firme à idéia de que se possa curar câncer com a vacinação por híbridos de células tumorais e dendríticas. A retratação não invalida para sempre essa linha de pesquisa, decerto, mas quem se decidir a prosseguir com ela em seu laboratório não pode mais escorar-se na autoridade do grupo da Universidade de Göttingen (Alemanha) liderado por Alexander Kluger.
Vale a pena ler a retratação, que tem pouco mais de uma linha na edição de setembro da revista: "Os autores desejam unanimemente suspender ["retract'] esse trabalho [citado no título] em razão de várias afirmações incorretas e da apresentação errônea de dados primários, resultados e conclusões".
Apesar de inequívoca, de algum modo essa retratação lacônica parece insuficiente diante da repercussão que a notícia obtivera em março de 2000, no mundo todo. Chegou a ser registrada na Folha, ainda que discretamente, em seção de notas à pág. 32 deste caderno, no dia 12 daquele mês, sob o título "Oncologia": "Pesquisadores da Universidade de Göttingen, em estudo publicado na "Nature Medicine", desenvolveram uma vacina que combate o câncer renal, na fase em que a doença começa a se espalhar pelo corpo, a partir de substâncias produzidas pelas próprias células cancerígenas."
É quase certo que a notícia deva ter animado milhares de portadores de tumores renais no Brasil -infundadamente, agora se vê. Trata-se do pior tipo de desserviço que o jornalismo científico pode prestar, ainda que de modo involuntário.
Serve, ao menos, para vacinar seus militantes contra o excesso de confiança depositado no mecanismo de "peer-review" (revisão por pares) dessas publicações especializadas. Pelo que fica demonstrado no exemplo, esse filtro de qualidade não é infalível. Mais falíveis ainda, como o longo intervalo de três anos e meio sugere, parecem ser os procedimentos editoriais para a publicação dessas retratações. Os editores se justificam dizendo, em editorial na pág. 1.093 da edição de setembro da "Nature Medicine", que vários meses foram necessários, primeiro, para convencer todos os autores da necessidade da retratação, e, depois, outro tanto para que chegassem a um acordo sobre sua redação.
Pelo menos ajudaram a chamar a atenção, com o editorial, para a senda tortuosa que trilharam na companhia dos autores flagrados, intitulando-o, constrangida e apropriadamente, "O Longo Caminho da Retratação".

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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