São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2008

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+ Marcelo Leite

140 mil anos de solidão


Para negar o conceito de raça, bastam as razões éticas

Chegou à praça um livrinho precioso, "Humanidade Sem Raças?" (Publifolha, 69 págs. R$ 12,90), do geneticista Sérgio D.J. Pena. Aviso logo que tive alguma participação no contato entre autor e editor, minúscula. Não desaconselha o elogio, que vem aqui acompanhado de uma apreciação crítica.
Pena está a cavalo para mostrar que a noção de raças foi superada pela ciência contemporânea. Autor de estudos célebres sobre a composição genética da população brasileira, foi decisivo para mostrar que não existe correspondência entre marcadores de origem africana ou européia e indivíduos que reconhecemos, respectivamente, como "negros" e "brancos".
O pesquisador da UFMG apresenta no livro o argumento -mais que defensável- de que é preciso deletar de vez o conceito de raça. E que a ciência pode fazer muito por isso.
O cerne do argumento está na constatação, lançada pelo americano Richard Lewontin, de que há mais diversidade genética no interior de populações humanas geograficamente delimitadas, como os africanos, do que na comparação entre populações. Como diz Pena, se uma catástrofe eliminasse todas as pessoas da Terra, menos na África, 95% da diversidade de genes humanos ainda sobreviveria.
Ela se formou nos 140 mil anos em que nossa jovem espécie ficou confinada àquele continente. Só nos últimos 60 mil anos se espalhou pelo globo e teve oportunidade de diferenciar a meia dúzia de genes, em meio a dezenas de milhares, por trás de características como a cor da pele.
Raças não constituem, portanto, os tipos homogêneos que inspiravam as teorias racistas "científicas" dos séculos 19 e 20. Mesmo a substituição de "raça" por "população", na segunda metade do século passado, foi incapaz de desconstruir o suposto apoio científico para a contínua discriminação entre seres humanos.
Pena sugere uma saída radical: substituir a idéia de raça pela de indivíduos únicos, no sentido pleno da expressão latina "sui generis". Seria a única posição compatível com as constatações da moderna ciência genômica -a humanidade sem raças mencionada no título. "Uma grande família."
A ciência natural pode e deve contribuir para problematizar as noções correntes, forçando sua revisão e adaptação. Mas ela não consegue por si só desfazer, com os fatos iluminados por seu facho direcional, aquilo que viceja na selva escura das interpretações e dos valores. Admitir que a ciência tenha tal poder conduz a uma ladeira escorregadia. No campo da pesquisa, os valores decisivos são cognitivos. É mais prudente dizer que bastam as razões éticas para negar o conceito de raça. Se a ciência as corrobora, tanto melhor, mas é bom não se fiar nela.
Imagine o leitor que a genômica venha a identificar uma correlação de certos genes com aptidões e comportamentos (in)desejáveis. E que seja possível demonstrar que eles ocorrem com freqüência maior em populações identificadas como "negras" ou "brancas". Não faltará quem conclua que esta ou aquela é "superior".
Não acredito (nem Pena) que seja um programa de pesquisa sensato e frutífero, mas não se descarta de antemão que possa ter algum sucesso. Em saúde pública, por exemplo, faz sentido investigar a correlação de certas doenças com esses descritores "raciais", por imperfeitos que sejam. Há vidas em jogo.
A ciência se limita a indicar regularidades e diferenças. Cabe a nós aprender a conviver com elas.


MARCELO LEITE é autor de "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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