|
Próximo Texto | Índice
Ilusão de um paraíso biotecnológico
Esperança do Brasil de ganhar dinheiro explorando os recursos genéticos da Amazônia esbarra em um excesso de diversidade biológica que nada tem de especial para a indústria farmacêutica
Se a Amazônia fosse o Pulmão Molecular do planeta, como explicar que permaneça vazio o elefante branco no Distrito Industrial de Manaus?
DO COLUNISTA DA FOLHA
Uma consulta à página na internet do
Centro de Biotecnologia da Amazônia, em Manaus,
revela que os 12 mil metros
quadrados da instalação contêm espaço para 25 laboratórios, mas abrigam só nove doutores e, ao todo, menos de cem
funcionários. Se a Amazônia
fosse de fato o Celeiro de Genes
do mundo, o Pulmão Molecular do planeta, seu Eldorado
Tecnobiológico, como explicar
que permaneça vazio o elefante
branco no Distrito Industrial
da Zona Franca de Manaus?
Há muitas explicações, decerto, a começar pela carência
de recursos humanos qualificados na região. No passado, em
2000, também fracassou um
acordo entre a iniciativa BioAmazônia e a empresa Novartis,
firmado à revelia do governo
federal e por ele anulado. Havia
sido moldado em acordo similar firmado uma década antes,
e dado como paradigma da bioprospecção, entre a empresa
Merck e o INBio, do governo da
Costa Rica, pela quantia de 2,8
milhões de dólares, do qual hoje ninguém mais fala.
Do acordo brasileiro se pode
dizer que naufragou por impróprio e por força da saudável
reação social aos seus termos e
condições. Mas o que dizer dos
parcos resultados colhidos pelo
INBio e, provavelmente, do futuro acanhado do CBA?
Com certeza, que a bioprospecção não tem rendido nem
uma fração do que prometia
em 1992. Naquele ano se negociou no Rio de Janeiro a versão
final da Convenção-Quadro
das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica, consagrando o generoso princípio da
repartição de benefícios pelo
uso de saberes tradicionais. O
objetivo, aqui, é precisamente
este: questionar a idéia feita de
que a Amazônia represente
uma espécie de Paraíso Genético, imagem fadada a se desfazer, assim como se desfizeram
as do Pulmão Verde do mundo
e do Celeiro de Alimentos.
Ativos em excesso
Há outra figura poderosa em
gestação, a do Armazém Global
de Carbono. Só que essa o país
cuida de desmontar materialmente, não simbolicamente,
por meio do desmatamento.
Não se trata, é claro, de negar
à Amazônia a condição de
maior província de megadiversidade do globo terrestre. Cerca
de um décimo das espécies de
mamíferos, aves e anfíbios da
Terra têm seus habitats na
maior floresta tropical, assim
como mais ou menos um quarto dos peixes de água doce.
Em matéria de bioprospecção, porém, quantidade pode
ser problema, não solução. Como encontrar a cura do câncer
entre centenas de milhares de
proteínas e metabólitos produzidos por centenas de milhares
de organismos pluri e unicelulares, a maioria dos quais nem
sequer se conhece? Como tornar racional essa busca?
Decerto o conhecimento de
índios e comunidades caboclas
pode dar pistas, mas a tentativa
de desenvolver quadros de referência para promover uma
valorização eqüitativa desses
saberes para uso tecnoindustrial se tornou uma espécie de
pesadelo prático, ético e jurídico para definir quem ou qual
grupo é detentor de tais direitos e pode tanto aliená-los
quanto auferir renda com eles.
Não é só por tais dificuldades,
no entanto, que a bioprospecção não avança, mas também
porque ela é intrinsecamente
ineficiente. À indústria biotecnológica (fármacos e agroindústria, principalmente) interessam poucos compostos capazes de gerar rendimentos extraordinários. A imagem corrente diz respeito a uma Amazônia como celeiro de genes de
impacto mundial, não de matérias-primas tradicionais.
Exemplos como o do curare e
seus relaxantes musculares,
usados em cirurgias no mundo
inteiro desde os anos 1940, não
passam de exemplos -poucos e
raros. O tesouro da biodiversidade na ponta do arco-íris lançado pela Rio-92 não se materializou: continua enterrado na
forma de grãos de ouro genético sob toneladas de ganga e pirita biológica.
Mesmo que uma pepita biotecnológica seja encontrada na
Amazônia, a origem geográfica
não dá garantia de nada. Nessa
nova e ilusória corrida pelo ouro, o que importa é obter a patente e descobrir um processo
para fazer a síntese industrial
do composto de interesse. Com
ela, tornam-se obsoletas as máquinas pesadas, úmidas e pegajosas que são os organismos.
Além disso, o mundo inteiro
é uma federação de províncias
garimpáveis: numa única coleta no mar dos Sargaços, o prodígio genômico Craig Venter bateou mais de 1,2 milhão de genes inéditos, de 1.800 espécies
(mínimo de 148 desconhecidas), identificados com base
unicamente em análise por métodos computacionais.
Muitas outras amostras foram colhidas por Venter a bordo do veleiro Sorcerer-2, numa
viagem de volta ao mundo que
deveria prosseguir pelo rio
Amazonas. O plano terminou
abortado, após as complicações
políticas e diplomáticas surgidas com sua incursão bioprospectiva nas ilhas Galápagos.
Só no Brasil, estão à disposição para bioprospecção também mais de 8 mil quilômetros
de costa, a mata atlântica, o cerrado, a caatinga... Um reles cupim de qualquer um desses biomas pode fornecer a pista para
enzimas capazes de digerir celulose e produzir álcool também a partir do bagaço de cana
e da palha de milho, não só da
sacarose. Viraria de pernas para o ar a tecnologia de produção
de biocombustíveis, na qual o
Brasil tem hoje algumas vantagens comparativas.
Nas fontes termais do oceano, em rochas de até três quilômetros de profundidade e nos
gêiseres de Yellowstone vivem
micróbios ditos extremófilos.
São inventores ou usuários de
vias metabólicas inimagináveis
por espécies amazônicas. Basta
um deles para originar uma
droga arrasa-quarteirão.
Ninguém depende da cornucópia amazônica para "bamburrar", como se dizia nos garimpos de chão, de rio e de rocha. Tampouco se trata de negar que exista biopirataria, mas
de indicar que ela só é de fato
disseminada se entendida em
sentido muito amplo. Não faltam casos de turistas duvidosos
presos pela Polícia Federal com
caixas de aranhas e outros bichos -mas isso é tráfico de animais, um crime antigo.
Também há o precedente do
registro da marca "cupuaçu"
por uma empresa de alimentos
no Japão -mas isso é pirataria
cultural, não biológica. Por fim,
não resta dúvida de que amostras de sangue de índios da
Amazônia se encontram à venda por empresas estrangeiras,
como a Coriell Cell Repositories -mas tudo indica que houve nesses casos negligência grave de normas éticas da prática
da medicina, como o consentimento informado. Não se conhece, todavia, produto ou medicamento desenvolvido a partir dessas células.
Se por "biopirataria" se entender o furto ou apropriação
indevida de informação genética para patenteamento e obtenção de lucros, pela indústria
farmacêutica ou agrobiotecnológica, os casos são raros, se não
inexistentes. A CPI da Biopirataria pediu até a prisão de madeireiros por contribuições
eleitorais ilegais, mas não produziu casos documentados de
biopirataria em sentido estrito.
Só cinco itens sob essa rubrica foram investigados pela comissão: saída irregular de aranhas do Instituto Butantan para o exterior; suposta patente
de compostos da rã-da-castanha; atividades suspeitas da
ONG ACT entre indígenas do
Parque Xingu; venda de terras
estaduais do Parque Chandless; venda de sangue indígena
Karitiana e Suruí. Todos descartados no relatório final.
Insuficiência
Parafraseando o título do
clássico livro da arqueóloga
americana Betty Meggers
-"Amazônia, a Ilusão de um
Paraíso"- sobre a capacidade
de suporte de sociedades humanas pela floresta, pode-se dizer que a imagem da região hoje
é refém da Ilusão do Paraíso
Biotecnológico.
Apesar de muito criticada no
passado pelo que comporta de
determinismo ecológico na interpretação do registro etnográfico e arqueológico, a perspectiva inaugurada há meio século por Meggers vem sendo
parcialmente corroborada por
estudos sistemáticos da nutrição de caboclos amazônicos.
Eles revelam uma crônica insuficiência de calorias, ainda que
não de proteínas.
Prosseguindo com o paralelo,
é o caso de dizer também que a
biodiversidade amazônica não
carece de "sustança" genética,
abundante como é na floresta,
mas de calorias capazes de acelerar o metabolismo de sua
apropriação pelo capital. Os genes estão lá, mas indistinguíveis contra um pano de fundo
de variabilidade orgânica, bioquímica e taxonômica quase
infinita, monótona por força da
quantidade, por saturação.
William James também afirmou, na última carta que escreveu em sua estadia de oito meses no Brasil em 1865-66, que a
sonolência produzida pela monotonia florestal fazia parecer
que a vida anterior (a de Boston) é que era sonho, e não tanto a experiência amazônica.
Sonho amazônico
Não é o caso de especular sobre o que teria sido de James se
tivesse decidido permanecer
na entorpecedora vigília amazônica, em lugar de retomar a
vida lembrada e a sonhada carreira bostonianas. Nada impede, porém, de especular: qual
visão a ciência natural poderia
produzir da Amazônia e de sua
biodiversidade que não fosse a
de sua valorização como jazida
de recursos genéticos? Que outro tipo de conversa, menos escuta interesseira e mais diálogo
criativo, poderia ela estabelecer com saberes tradicionais?
Com qual Amazônia, enfim,
seria melhor sonhar? Eis um
sonho possível: um dia, os organismos da Amazônia viverão
numa cultura em que não serão
julgados pelo tipo de pele genética que vestem, mas pelo conteúdo de seu caráter.
Nesse sonho, peixes também
poderiam ser gente. E, quando
se encontrassem, gente-peixe
com gente-tukano, gente-tuiuka e gente-pesquisador, o sonho poderia materializar-se
num livro, onde mais gente ficaria sabendo que foram coletadas por toda essa gente, no
Alto Tiquié, 147 espécies de
peixes das 2.500 que se estima
existirem na bacia Amazônica.
Das 147 espécies coletadas sob
orientação de tukanos e tuiukas, entre 10 e 15 eram novas
para a ciência de além-floresta.
Cinco já ganharam novos nomes, "científicos": Moenkhausia diktyota, o caroço-de-tumu
("tumupe", em tukano, ou "tumuape", em tuiuka); Creagrutus tuyuka, uma piaba ("wero
sema põrero ñigu", ou "wegero
sukubero põrero ñigu"); Corydoras tukano, uma corridora
("wai pota yutugu", ou "wai pota yudugu"); Callichthys serralabium, o tamoatá ("dita bukawi", ou "dita muka"); e Jupiaba
poekotero ("uta sa, uta saku,
poe ko'tero niti pe kuogu"; ou
"poe kotero niti petigu"). Nomes compridos, mas diretos:
piaba-cocô, ou saco-de-cocô
(referência a hábitos alimentares do peixe), ou vigia-da-cachoeira-com-pinta-de-carvão.
Para a biotecnologia, nada
disso tem valor, é evidente. Mas
pode virar ciência, se por ciência se entender algo mais que o
conhecimento produzido só
com a perspectiva de obter controle tecnológico sobre processos naturais. Mesmo que nenhum cientista apareça por lá,
tudo ainda assim estará lá, em
si, não para a tecnologia.
Carbono
Assim também o carbono está lá e agora, fixado na biomassa
de organismos vivos e mortos.
Pouco importa -do ponto de
vista da mudança climática global em curso- se vai dar tempo
de atribuir-lhe valor num mercado, antes que o desmatamento leve tudo de cambulhada.
A área desmatada na Amazônia brasileira, sobretudo nos
últimos 20 anos, já passou de
650 mil quilômetros quadrados. Equivale a cerca da metade
da área originalmente coberta
pela outra grande floresta tropical nacional, a mata atlântica.
O país com nome de madeira
sob ameaça de extinção levou
cinco séculos para destruir a
mata atlântica, embora tenha
se esforçado mais na segunda
metade do século 20. Restaram
menos de 8%, como a lembrar
que o Paraíso Genético é uma
ilusão perfeitamente desnecessária.
(MARCELO LEITE)
Próximo Texto: O que é que a Amazônia tem? Índice
|