São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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+ ciência

O EXCESSO DE FERTILIZANTES USADOS PARA CULTIVAR CANA EM QUEENSLAND, NA AUSTRÁLIA, É O MAIOR SUSPEITO PELA PROLIFERAÇÃO DE COROAS-DE-ESPINHOS, QUE MATAM CORAIS DA GRANDE BARREIRA JÁ AMEAÇADOS PELO EFEITO ESTUFA

FLAGELO DE CORAIS

Divulgação B. Willis/Science
Coroa-de-espinhos (Acanthaster planci), uma espécie de estrela-do-mar que se alimenta de corais, vista de baixo através do vidro de um aquário


Marcelo Leite
enviado especial a Townsville (Austrália)

A beleza está no olho do admirador, diz um provérbio inglês, e sua verdade sumária se aplica bem às duas imagens acima. Para começo de conversa, o coral duro da espécie Acropora millepora da página seguinte está morto: é só uma lembrança literalmente desbotada do organismo coletivo que vicejava sobre o exoesqueleto calcário que restou. Desbotamento ("bleeching"), de fato, é o nome da praga associada ao aquecimento global que ameaça o maior e mais famoso conjunto de corais do mundo, os 2.000 km da Grande Barreira a leste da Austrália, que carreia estimados 2 bilhões de dólares australianos (R$ 4,3 bilhões) por ano em turismo. Diretamente acima, nesta mesma página, aparece o outro grande flagelo dos corais: a coroa-de-espinhos (Acanthaster planci), uma espécie de estrela-do-mar que é o único predador natural especializado nesses condomínios de pólipos que enfeitam o mar. Mais conhecida dos cientistas australianos como Cots (abreviação do nome em inglês, "crown-of-thorns" ), o animal voraz está em franca expansão -também por obra do homem, acreditam os pesquisadores- e deixa atrás de si uma trilha de devastação e palidez. Não deixa de ser uma bela criatura, a seu modo: 25 cm a 35 cm de diâmetro, 14 a 18 braços rebrotáveis recoberto de espículas venenosas, uma coloração que pode variar de vermelho a roxo, com espinhos de verde a amarelo. Bela, até, na voracidade com que se aplica ao destino de todo ser vivo: sobreviver e multiplicar-se. A forma de alimentação não poderia ser mais esquisita. A estrela da morte planta-se por um período de quatro a seis horas sobre um trecho de coral e expele o próprio estômago sobre dezenas ou centenas de pólipos, que começa a digerir. Quando termina, empurra tudo de volta para dentro do corpo, com ajuda dos espinhos. A coroa-de-espinhos consome o tecido mole do coral, que é rico em carboidratos, dos quais o coral retira 80% de sua energia e que são produzidos por fotossíntese por algas dinoflageladas do tipo "zooxanthellae".

Simbiose
Essas algas marrons são organismos unicelulares que cada pólipo de coral duro abriga dentro de suas próprias paredes, numa relação simbiótica: a alga sintetiza alimento (amido) usando energia da luz solar, e o coral lhe dá abrigo e substâncias contendo carbono que servem de matéria-prima para o microrganismo realizar a fotossíntese. Por tal razão corais desse tipo só são comuns até uma profundidade de cerca de 30 metros, já que a abundância de luz é fundamental para a alga cumprir seu papel na parceria.
As "zooxanthellae" são muito sensíveis à mudança de temperatura. Basta uma variação de 1C ou 2C para que abandonem as paredes do pólipo coralino, provocando a morte do parceiro. Sem as algas para lhe dar cor, o coral desbota -daí o fenômeno do "bleeching". Dito de outro modo, os corais se encontram entre a coroa-de-espinhos e a caldeirinha do efeito estufa -retenção da radiação solar na atmosfera por um cobertor de gases, como o carbônico, que se torna mais espesso com as emissões de atividades humanas, como a queima de combustíveis fósseis e a destruição de florestas.
Segundo o Instituto Australiano de Ciência Marinha (Aims), até que melhoraram os surtos de crescimento na população do predador espinhento, a intervalos de aproximadamente 15 anos. Em janeiro passado veio a público a primeira comparação entre dois grandes surtos com base num levantamento sistemático da Acanthaster planci: menos da metade dos recifes estudados ao largo de Townsville -cidade turística no nordeste tropical da Austrália- estava afetada em 2003. A mesma metodologia de medição aplicada em 1986, durante outro grande surto, havia revelado que 75% dos recifes estavam sob ataque. "A evidência mostra que a epidemia não está pior do que se experimentou anteriormente", afirma num comunicado Hugh Sweatman, que lidera o programa de monitoramento do Aims.
Essa aparente diminuição na ameaça representada pela coroa-de-espinhos pode ser resultado de uma tentativa de controle patrocinada pelas próprias empresas de turismo. Elas levam em seus barcos -em meio aos passageiros- mergulhadores profissionais com a missão de exterminar tantas Acanthaster planci quanto possível na sua área de concessão, por meio de injeções de bissulfato de sódio.
Não foi diferente no cruzeiro da empresa Sunferries, no domingo 24 de maio, até o recife John Brewer, a cerca de 70 km de Townsville. Aquele jovem alto e solitário, de cabeça raspada, não estava ali a passeio. Era um dos poucos que carregava o próprio equipamento de mergulho (os turistas, quando ainda se encontram em condição física adequada após a hora e meia de balanço, utilizam o oferecido pela tripulação). Ao abrir a bolsa e iniciar sua paramentação, sacou também a arma -parecida com um arpão pequeno- para injetar o veneno na coroa-de-espinhos sem se espetar com suas espículas tóxicas. Nas três horas seguintes, desapareceria da vista dos passageiros normais e pagantes.
Ninguém sabe ao certo qual é a raiz da proliferação das estrelas da morte de corais, mas as suspeitas recaem sobre as práticas agrícolas no Estado de Queensland, onde fica Townsville, uma região em que se cultiva muita cana-de-açúcar. Como no Brasil, essa monocultura muitas vezes abusa de fertilizantes, cujo excesso acaba chegando aos rios e, por eles, até o oceano. Nas águas do mar, a superabundância de nutrientes favorece a proliferação sobretudo de algas, que por sua vez servem de alimento para vários organismos, mas não é simples estabelecer um vínculo direto com o aumento da população de coroas-de-espinhos, em particular.
Segundo Ray Berkelmans, pesquisador do Aims em Townsville, a chave parece estar na fase larval do complexo ciclo de vida do bicho, fase essa em que ele fica à deriva no oceano, alimentando-se de algas. Os fertilizantes provenientes da agricultura aparentemente favorecem o crescimento de diatomáceas, algas dotadas de carapaças que são também um dos alimentos preferidos pelas larvas da Acanthaster planci.
A conexão cana-de-açúcar/coroa-de-espinhos/morte de corais duros ainda carece de mais evidências, mas os pesquisadores estão animados com a perspectiva de converter os usineiros de Queensland à causa, convencendo-os a reservar faixas livres de cana às margens dos rios, para evitar que os fertilizantes cheguem ao oceano. "Os fazendeiros de cana vêm aqui; no fundo, eles são uns conservacionistas", arrisca Vic Singleton, do Aims.


O jornalista Marcelo Leite viajou à Austrália a convite do Conselho de Relações Austrália-América Latina (Coalar) e do Departamento de Relações Exteriores e Comércio (DFAT) daquele país


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