São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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Ciência em Dia

Biologia da contestação

Marcelo Leite
editor de Ciência

Depois do cientista Thomas Butler, condenado nos EUA por negligência na manipulação de microrganismos de interesse para guerra biológica, agora é a vez de um artista -Steve Kurtz- ser processado sob os rigores do Patriot Act (leis antiterrorismo aprovadas nos EUA após o 11 de Setembro). Sintomaticamente, Kurtz é ativista de um movimento de "biologia contestacional".
O artista é membro de um grupo radical chamado CAE, Critical Art Ensemble (www.critical-art.net), e professor da Universidade Estadual de Nova York (Suny) em Buffalo. As suspeitas levantadas por promotores contra ele começaram a ser consideradas há pouco mais de uma semana por um Grande Júri Federal -um tipo de tribunal em que cidadãos norte-americanos comuns julgam não a culpa de uma pessoa, mas se as evidências reunidas contra ela são suficientes para levá-la a julgamento. Até a conclusão desta edição não havia decisão.
As circunstâncias em que a investigação contra Kurtz foi iniciada são surreais (veja em www.caedefensefund.org). Segundo a "newsletter" científica "The Scientist" (www.the-scientist.com), tudo começou com uma ligação do artista para o número de emergência 911 no dia 11 de maio: Kurtz pedia ajuda para sua mulher, que havia morrido do coração durante o sono.
Policiais e paramédicos que foram a sua casa notaram, no entanto, a presença de materiais que consideraram suspeitos, como placas de Petri (discos de vidro usados em laboratórios de biologia) e outros utensílios de pesquisa. Avisaram o FBI, que providenciou um mandado de busca. Durante dois dias, agentes da Força-Tarefa Conjunta de Bioterrorismo em trajes de segurança isolaram o quarteirão e vasculharam a casa do artista.
Segundo o FBI de Buffalo, nenhum agente perigoso foi encontrado. Havia na casa de Kurtz amostras de bactérias, inclusive uma linhagem de Escherichia coli (um pau-para-toda-obra dos laboratórios de microbiologia). Segundo o advogado de defesa Paul Cambria, era inócua e se destinava a projetos artísticos sobre biotecnologia. Só que os investigadores decidiram dar uma olhada também nos escritos anteriores de Kurtz e de seu grupo, e aí a coisa toda se complicou.
Kurtz não está dando entrevistas, mas a "The Scientist" reproduz trechos de um e-mail seu que circula na internet. "Fiquei detido por 22 horas no FBI. Eles apreenderam o corpo de minha mulher, minha casa, meu gato e meu carro. Esses itens foram liberados uma semana depois", escreveu. "[Também] apreenderam computadores, equipamento científico, partes de minha biblioteca, arquivos de ensino, identidade e todo o material de pesquisa para um novo livro."
Uma espiada na área do grupo CAE dedicada à biologia contestacional (www.critical-art.net/biotech/conbio) revela que Kurtz e seu pessoal têm idéias nada ortodoxas para combater a disseminação das biotecnologias, como uma "sabotagem biológica difusa". Os textos condenam táticas como incendiar campos de plantas transgênicas, que tornariam os militantes antipáticos e os cientistas simpáticos, e dão preferência a coisas como soltar moscas geneticamente modificadas em laboratórios que fazem pesquisa com elas, de modo a torná-la inútil (por causa da contaminação).
Diante da paranóia antiterrorista que se espalha nos EUA, é o caso de perguntar se tais métodos são assim tão radicais.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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