São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

Próximo Texto | Índice

+ ciência

Vida digital

Reprodução
Tela de "Pac Man", um dos jogos eletrônicos mais populares da década de 80



Programas de computador competem, se reproduzem e evoluem, a ponto de alguns especialistas já defenderem a noção de que eles de fato estariam 'vivos'


Salvador Nogueira
da Reportagem Local

Eles nascem, se multiplicam e morrem. Disputam espaço no ambiente e lutam uns com os outros para deixar o maior número de descendentes. Sofrem modificações sutis ao longo das gerações, que podem ou não favorecer o sucesso dos descendentes -e evoluem. Mas não se engane pela descrição: são apenas programas de computador. Ou não.
Sistemas informatizados construídos em laboratório para o estudo da evolução biológica replicam tão fielmente os mecanismos da natureza que resultaram na incrível variedade de formas de vida sobre a Terra que é difícil não perguntar se eles de fato não estariam "vivos" -embora não guardem similaridade alguma com a vida orgânica com a qual estamos acostumados. E o nome dado pelos cientistas a esses programas exóticos não ajuda nada a desfazer a névoa: "organismos digitais".
Em 1990, o ecólogo norte-americano Thomas Ray criou o primeiro software capaz de simular os mecanismos evolutivos com programas de computador. Em seu engenho Tierra (disponível gratuitamente em www.isd.atr.co.jp/ray/tierra/), diversos programas simples disputavam o espaço na memória do computador, se replicando e sofrendo mutações aleatórias que podiam ou não favorecê-los na luta para levar seu "genoma" (sua programação) à geração seguinte.


Organismos digitais atingem quando muito uma complexidade equivalente à de vírus e bactérias, e ninguém se sente mal por matá-los no mundo real


Com a criação do sistema, Ray estava abrindo uma caixa de Pandora que dificilmente voltaria a ser fechada. Também pudera. Programas como o dele ofereceriam aos cientistas a primeira oportunidade de observar de perto o desenrolar da evolução, um processo natural cuja lentidão se estende além do tempo de vida de um ser humano, mas que pode ser enormemente acelerado num fac-símile digital. Que outra forma poderia haver de acompanhar em curto espaço de tempo o nascimento e a morte de milhares de gerações? Até mesmo as rápidas bactérias são como tartarugas, comparadas ao ritmo de multiplicação de um organismo digital. O alemão Christoph Adami é físico teórico por formação, mas se rendeu ao fascínio exercido pelos organismos digitais. "Eu comecei a trabalhar com biologia evolutiva em 1992. Comecei com o Tierra, mas logo decidi desenvolver minha própria versão do programa, que se chama Avida", conta (o programa está disponível na internet, em dllab.caltech.edu/avida/). Hoje Adami está no comando de um dos mais importantes centros para essas pesquisas, o Laboratório de Vida Digital do Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia), nos EUA. Seu trabalho consiste em dois desafios ímpares para um cientista: o primeiro é desvendar os mistérios por trás do fenômeno evolução. O segundo é convencer os biólogos de que seus resultados obtidos digitalmente são aplicáveis aos sistemas vivos de natureza orgânica. Mas parece que o esforço está valendo a pena. "Muitos biólogos, especialmente os que são capazes de maior dose de pensamento abstrato, estão aceitando esses resultados", afirma. "Claro, você nunca vai conseguir convencer todo mundo, mas esse tipo de pesquisa está se mostrando cada vez mais atraente."

Vida e complexidade
Não é à toa. As implicações dos estudos conduzidos por Adami e seus colegas podem até ir além das fronteiras do que se conhece por vida terrestre, obtendo alguns princípios básicos que ainda são motivo de debates nos círculos da astrobiologia -ciência que estuda as possibilidades e a natureza da vida em outras partes do cosmos. A mais interessante delas talvez seja a que diz respeito à emergência da complexidade. Existe afinal uma tendência natural e inexorável à formação de organismos cada vez mais complexos, culminando talvez em formas de vida inteligentes, ou o fato de existir incrível variedade biológica e milhões de espécies de seres pluricelulares na Terra é apenas fruto de uma grande coincidência? Haveria apenas bactérias, vírus e organismos muito simples lá fora? "Como organismos complexos podem emergir de formas mais simples?", pergunta Adami. "[Richard] Dawkins, por exemplo, defende que essa escalada de complexidade seja a rota usual. Já [Stephen Jay] Gould não pensa assim. Mas a resposta pode acabar vindo de nossos estudos. Na verdade, talvez possamos criar experimentos que mostrem que há princípios matemáticos sugerindo que a vida complexa é o único caminho." E as respostas parecem já estar sendo encaminhadas. Adami e seus colegas submeteram recentemente à revista britânica "Nature" (www.nature.com) os resultados de um experimento detalhado que aborda justamente o tema da emergência da complexidade. Obviamente, até que o trabalho seja aceito e publicado, Adami não se sente à vontade discutindo o estudo, mas dá algumas dicas sobre o rumo de seus experimentos. "O que estamos percebendo é que a evolução de organismos complexos está relacionada com a evolução de mundos complexos. Você pega, por exemplo, o planeta Netuno. Ele é bem grande, mas bem simples -basicamente igual em todas as regiões. Então, se alguma forma de vida emergir lá, ela deve ser bem simples. Na Terra, você tem uma incrível variedade de ambientes, e isso acaba gerando também maior complexidade nas formas de vida. Coisas complexas evoluem em mundos complexos", diz. "E é claro que há um processo de co-evolução aí. Vida complexa gera um mundo mais complexo que gera vida mais complexa. Complexidade gera mais complexidade." Outra observação interessante para o entendimento dos mecanismos mais sutis da evolução feita com o uso de estudos em ambiente digital é a de que, ao longo de gerações, os organismos passam por grandes períodos de estabilidade em seus genomas, seguidos por períodos equivalentes de mudanças frenéticas. A idéia lembra imediatamente a célebre teoria do equilíbrio pontuado, de Stephen Jay Gould. Segundo essa tese, os registros fósseis, que só mostram saltos no processo evolutivo, e não um fluxo gradual e sutil na forma dos organismos, não estariam incompletos, mas refletiriam o próprio mecanismo da evolução, com grandes saltos seguidos por períodos de calmaria. Mas Adami não mergulha de cabeça nessa analogia. "Nossos estudos mostram esse fenômeno, mas numa escala completamente diferente. Trabalhamos com experimentos que vão de mil a 10 mil gerações de organismos, algo muito menor do que o tempo exigido para confirmar as idéias de Gould. No ritmo atual, precisaríamos de um tempo absurdo, talvez 1 milhão de anos, para ver isso acontecer nas simulações. O equilíbrio pontuado, para mim, segue sendo uma conjectura."

Colaboração brasileira
Se essa pergunta segue sem resposta, muitas outras sobre a natureza da evolução podem ser abordadas com os organismos digitais. No laboratório de Adami há dois brasileiros que estudam organismos digitais. Paulo Campos, 29, investiga o que certos trechos não-codificantes do genoma podem revelar a respeito da evolução de uma dada espécie. Sua mulher, Viviane Moraes de Oliveira, 30, está usando as técnicas do Laboratório de Vida Digital para investigar como são criados nichos ecológicos num ambiente real. Ambos são físicos do Instituto de Física da USP em São Carlos e ficarão na Califórnia por mais cinco meses, realizando essas pesquisas no pós-doutorado.
"O campo de estudos de organismos digitais é bastante próspero", diz Oliveira. "É como uma otimização do processo de evolução para que possamos fazer experimentações", prossegue Campos. "E o melhor é que você não está lidando com organismos vivos, você pode manipular à vontade", arremata Oliveira. Mas será?
Em um artigo de revisão publicado na revista científica "Trends in Ecology & Evolution" (tree.trends.com), Adami e seu colega Claus Wilke não pareciam muito certos da condição inanimada de seus inofensivos programas de computador. O título: "A biologia dos organismos digitais". No artigo, além de apontar toda a utilidade dessa técnica para os estudos da evolução, a dupla faz uma sugestão das mais intrigantes. "Além de seu uso como uma ferramenta de entendimento da evolução em geral, é importante estudar a biologia de formas de vida artificial por seus próprios méritos. Recentemente, Lipson e Pollack mostraram que os princípios de robôs simples auto-replicantes estão ao alcance da tecnologia atual. Eventualmente, tais robôs, e o software que os dirige, podem evoluir sem a interação humana, ponto em que eles se tornariam parte do ecossistema em que vivemos", escrevem.
Considerando que talvez os cientistas estejam mesmo criando formas de vida, embora totalmente dissimilares dos organismos baseados em carbono, não seria o caso de perguntar até quando os humanos terão o direito de realizar um experimento e depois desligar o computador, "aniquilando" todos os seus "habitantes"?
Para Adami, a pergunta ética pode até vir a ser pertinente um dia, mas isso ainda está longe de acontecer. "As pessoas aparentemente não sentem problemas éticos quando escovam os dentes. E estão matando zilhões de bactérias no processo", argumenta. "Nossos organismos digitais, quando muito, atingem a complexidade equivalente à de vírus e bactérias, e ninguém se sente desconfortável de matar esses organismos no mundo real. Não vejo problema ético com esses experimentos."
Apesar disso, Adami mais do que reconhece, aposta até, que o papel dos mecanismos de evolução dos organismos digitais podem se tornar uma peça fundamental para a criação do que seria a coroação de qualquer trabalho de geração de vida artificial: a criação de inteligência artificial. Ele é totalmente cético com relação às estratégias mais tradicionais usadas pelos cientistas na tentativa de se chegar a uma "consciência" artificial, como os sistemas especialistas (aqueles que buscam o resultado pela inclusão sistemática de informação em um sistema via programação, sem qualquer tentativa de "ensinar" a máquina a pensar). "Ainda entendemos muito pouco sobre como o cérebro e a consciência funcionam. Eu não acredito em humanos tentando projetar sistemas que eles ainda não entendem."
Por outro lado, as técnicas de evolução aplicadas hoje aos simples organismos digitais podem vir a trazer a pitada de sal que está faltando. "Se não podemos projetar coisas que não entendemos, podemos tentar fazê-las evoluir. A evolução é uma ferramenta muito poderosa", afirma Adami. "Em última análise, qualquer desenvolvimento significativo em inteligência artificial terá de lidar com isso."


Próximo Texto: Micro/Macro: O tamanho do Universo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.