São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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Ciência em Dia

O sexo dos anjos e a pessoa do embrião

Marcelo Leite
editor de Ciência

No futuro, dentro talvez de uns mil anos, nossos descendentes poderão comentar que tínhamos o hábito de discutir o estatuto jurídico dos embriões, assim como se diz hoje -com desdém- que um milênio atrás se debatia o sexo dos anjos. De longe (no tempo), nenhum debate essencial parece sério.
Considere essa questão cabeluda de definir quando começa a vida humana. Ela mobiliza crenças e paixões profundas, que não podem ser desfeitas com um golpe de mão. Mas tem implicações de peso para a liberdade de pesquisa.
Em qualquer debate sobre questões éticas -como o Congresso Mundial de Bioética (www.bioethicscongress.org.br) que começa quarta-feira em Brasília-, é inevitável que a questão venha à tona. Foi o que ocorreu durante uma mesa-redonda de que participei no último dia 17, em Ilhéus (BA), como parte do Fórum de Ética em Manipulações Genéticas organizado na Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc).
Já na fase dos debates, um professor da platéia perguntou se defendíamos também o assassinato de crianças, diante da concordância de alguns na mesa com a idéia de que seria legítimo destruir embriões para pesquisa de células-tronco. (Essas células guardam a capacidade de diferenciar-se em quase todos os tipos celulares do corpo e por isso são a coqueluche da hora no desenvolvimento de tratamentos para doenças degenerativas, por ora pouco mais que uma promessa.)
Como de hábito, o demônio se ocultava nos detalhes. Tentei explicar que havia um pressuposto na pergunta de que discordava: a idéia de que o conceito biológico de vida possa e deva ser identificado com o conceito jurídico de vida, e mais ainda com o de constituição da pessoa humana, do sujeito titular de direitos inalienáveis -como o direito à vida.
Dito de outro modo, não é óbvia nem cientificamente indiscutível a noção de que a pessoa humana surge no momento mesmo da concepção, como afirma o dogma católico vigente.
Outras denominações cristãs, como a anglicana, vêem a questão de modo diverso -e isso decerto tem a algo a ver com o fato de o Reino Unido ser um dos poucos países (ao lado de Israel e China) que permitem a pesquisa com embriões humanos e, portanto, a produção de células-tronco a partir deles (o que acarreta sua destruição). No caso, a Lei de Fertilização Humana e Embriologia britânica, de 1990, permite a manipulação somente até o 14º dia de desenvolvimento do embrião. No Brasil, esse tipo de pesquisa é vedado pela Lei de Biossegurança.
Como ensina a baronesa Warnock, presidente da Comissão de Inquérito que resultou nessa lei do Reino Unido (e conferencista do congresso desta semana em Brasília), nem sempre foi esse o dogma católico. Até o século 19, a doutrina vigente era de origem aristotélica e rezava que a alma, ou a forma plenamente racional da vida, só era infundida no embrião vários dias depois da concepção.
Não é o caso, aqui, de tentar reproduzir uma discussão teológica sutil. O exemplo só foi trazido à baila para ilustrar que essas questões variam com o tempo, mesmo no campo em que querem parecer eternas, e que envolvem decisões práticas, ou o traçado de uma fronteira que pode ter de ser alterado mais adiante.
Se for para buscar argumentos na biologia propriamente dita, prefiro o seguinte: até o 14º dia, o tal de "embrião" pode ainda dividir-se e transformar-se em gêmeos idênticos, ou mesmo quádruplos. Não faz muito sentido tomar como um indivíduo aquilo que ainda pode tornar-se duas, ou quatro, pessoas.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br



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