São Paulo, domingo, 27 de novembro de 2005

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Ciência em Dia

As células milagrosas do dr. Hwang

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

A notícia da semana não esteve em mais uma capa de revista prometendo milagres com células-tronco, mas na revelação de que foram comprados -e não doados- os 252 óvulos consumidos na primeira clonagem de um embrião humano, em 2004. O festejado trabalho da equipe de Woo-Suk Hwang resultou na produção de uma pioneira linhagem de células-tronco embrionárias humanas (CTEHs). E, quinta-feira última, na sua renúncia a todos os cargos oficiais que ocupava, em meio a uma tempestade bioética.


"Tomei uma decisão difícil para pavimentar o caminho para um dos maiores sonhos da humanidade"


Hwang havia conseguido estabelecer 11 outras linhagens de CTEHs. Prometeu que forneceria as células-curinga -capazes em teoria de se transformar em qualquer outra célula do corpo- para pesquisadores do mundo todo. O sul-coreano foi incensado como libertador, diante do obscurantismo de George W. Bush. A façanha lhe rendeu um artigo na prestigiada revista "Science".
Como sempre, nem tudo era pura dedicação ao progresso da ciência, como veio a público nas últimas semanas. Primeiro, seu parceiro americano, Gerald Schatten (Universidade de Pittsburgh), abandonou o barco. Alegou ter motivos para crer que alguns óvulos haviam sido obtidos por meios eticamente duvidosos, como a doação por uma pesquisadora subordinada a Hwang, que poderia ter sido coagida a fazê-lo.
Os óvulos são indispensáveis para a técnica de clonagem de embriões humanos (também chamada de transferência de núcleo de célula somática), a mesma que gerou a ovelha Dolly. No caso, os núcleos de células de adultos -no qual está contido o grosso de seu material genético- são fundidos com óvulos humanos desnucleados. Algumas poucas células assim reconstituídas começam a se dividir e podem dar origem a blastocistos, embriões com umas cem células das quais se deriva, sobre placas de vidro, a linhagem de CTEHs.
Diante da falta de explicações do chefe da equipe sul-coreana, jornalistas de seu país começaram a investigar mais a fundo a obtenção dos óvulos. Na segunda-feira, a rede de TV coreana MBC anunciou que 20 mulheres receberam quantias superiores a R$ 3.000 para se submeter ao tratamento com drogas para induzir superovulação, que traz algum risco para o organismo. Hoje a legislação sul-coreana, aprovada após o experimento de Hwang, proíbe essa comercialização.
A compra do material biológico foi confirmada por Sung-Il Roh, do Hospital Mizmedi de Seul, encarregado de obter os óvulos. "Foi difícil obter óvulos suficientes para nossa pesquisa. Foi inevitável oferecer alguma compensação em troca das doações de óvulos", disse o colaborador de Hwang em uma entrevista coletiva.
Acossado pelas perguntas, Roh lançou mão do curinga bioético que todo pesquisador da área sempre mantém na manga: "Tomei uma decisão difícil na esperança de que isso ajudaria a pavimentar o caminho para um passo decisivo na realização de um dos maiores sonhos da humanidade, que é o de encontrar remédio para as doenças difíceis de curar".

Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros "Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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