São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2007

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Gramática da ética

Para o americano Marc Hauser, a separação do bem e do mal tem base biológica e foi moldada pela evolução

Behrouz Mehri/France Presse
Casal caminha em avenida de Teerã em frente a mural que exibe pinturas retratando os abusos cometidos por soldados norte-americanos contra presos iraquianos na prisão de Abu Ghraib

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

Considere o seguinte caso: você está vendo um bonde passar num entroncamento e nota que o maquinista desmaiou. O bonde desgovernado está para atingir e matar cinco pessoas que estão andando sobre os trilhos, a menos que você puxe uma alavanca e o desvie. No entanto, na trajetória do desvio há mais uma pessoa, e ela morrerá caso você puxe a alavanca para salvar as outras cinco.
Considere agora a mesma situação. Mas, em vez de um desvio, existe um sujeito de 180 quilos do seu lado que você pode simplesmente empurrar para o trilho. O resultado é o mesmo: uma pessoa morre, cinco se salvam. Por que, então, a maioria das pessoas acha que é permissível agir no primeiro caso puxando a alavanca e não no segundo? E por que, quando instadas a justificar seu julgamento, a maioria das pessoas tem dificuldade em articular uma resposta?
O biólogo cognitivo Marc Hauser, professor de psicologia da Universidade Harvard (EUA), tem feito essas perguntas nos últimos anos a filósofos, cientistas e a voluntários em um teste elaborado por ele na internet (moral.wjh.harvard.edu). Ele concluiu que os humanos foram equipados pela evolução com uma capacidade de fazer julgamentos morais seguindo regras universais.
O "instinto da moral" seria exclusivo de humanos e estaria alojado numa região específica do cérebro (que nem ele nem outros cientistas estabeleceram qual é). Ele produziria decisões rápidas, baseadas numa "gramática de ação" inacessível ao consciente. Trocando em miúdos, os humanos de certa forma já nascem sabendo o que é certo e o que é errado, embora não consigam justificar conscientemente seus julgamentos -e, é claro, nem sempre ajam de acordo com eles, como demonstra o abuso de prisioneiros na prisão de Abu Ghraib, para citar um exemplo recente.
A proposta dessa gramática moral universal foi detalhada no livro "Moral Minds" ("Mentes Morais"), lançado nos EUA em outubro do ano passado. Ela é apresentada como uma hipótese em busca de testes, mas Hauser diz que ela será testada por uma série de estudos comparativos com animais, bebês e imageamento cerebral.
No livro, Hauser faz uma analogia entre o sentido da moral e o da linguagem, a partir da célebre definição de gramática universal produzida na década de 1950 pelo lingüista Noam Chomsky. A dupla tem colaborado nos últimos cinco anos no desenvolvimento de teorias sobre a origem da linguagem humana -estudos do cientista de Harvard com sagüis têm acrescentado uma perspectiva evolutiva às idéias de Chomsky à qual ele próprio resistia.
Da mesma forma como a gramática universal habilita a geração de regras sintáticas -sem especificar uma linguagem-, o que Hauser chama de instinto moral produz a base para comportamentos éticos sem prescrever uma bula. No entanto, ela limita a opção de julgamentos morais possíveis. Há tabus universais, como o incesto; há uma percepção inata de que ações são piores que omissões, mesmo quando levam ao mesmo dano -algo que, para Hauser, pode ter implicações na legislação de práticas como a eutanásia. E há resquícios do passado evolutivo do Homo sapiens que atuam, por exemplo, quando pessoas deixam de fazer doações para o Unicef que salvariam a vida de crianças em um país distante.
"A ação à distância gera um impulso altruísta mais fraco, porque nossa psicologia não evoluiu para isso", escreve. Em entrevista à Folha, Hauser, 46, explica a nova ciência da biologia da moral.
 

FOLHA - Falar a um antropólogo sobre universais morais humanos fará ele rir da sua cara e contar, por exemplo, como há casamentos consangüíneos em algumas culturas. Por que o sr. diz que os humanos têm um senso moral que evoluiu?
MARC HAUSER
- A premissa central do livro é que eu quero fazer uma distinção fundamental entre julgamento moral, por um lado, e comportamento moral, ou o que nós fazemos, por outro. Invocar todas as atrocidades do mundo é irrelevante para o meu argumento, da mesma forma que, para alguém interessado na lingüística formal que Chomsky iniciou há cerca de 50 anos, o conteúdo do que as pessoas dizem de fato é irrelevante para olhar para a gramática universal.
Portanto, a questão crucial é que, quando os lingüistas olham para questões de gramaticalidade da mesma forma que eu olho para a "eticalidade", trata-se na verdade da estrutura dos julgamentos que estão sendo analisados em busca de dados relevantes. O ponto aqui é que o que a ciência pode fazer, agora pelo menos, é olhar para os padrões de julgamento que as pessoas fazem como algo possivelmente muito diferente do que elas fazem de fato. O fato de que, no problema do bonde, nós obtemos respostas que parecem relativamente imunes a variação cultural não significa que as pessoas seguirão seus julgamentos se confrontadas com o problema na vida real.

FOLHA - Qual é a evidência mais decisiva para esse "órgão moral" até agora?
HAUSER
- Temos um artigo para ser publicado na revista "Nature" que mostra déficit seletivo quando há dano em certas partes do cérebro, que produz um padrão de julgamento que é muito diferente do de pessoas normais. Uma outra coisa na qual estamos trabalhando são dados de neuroimagem, mostrando que, por exemplo, quando você se confronta com um dado dilema moral, você tem um certo circuito ativado para as conseqüências, os resultados utilitários, e outro ativado para a ação em si. Então, há circuitos cerebrais diferentes envolvidos na ativação dos diferentes componentes do órgão moral.

FOLHA - A moralidade não seria simplesmente um subproduto da evolução da linguagem?
HAUSER
- Eu acho que não. O que as pessoas estão se perguntando agora na neurologia cognitiva é: quais as computações que o cérebro faz quando está em um domínio particular do conhecimento -seja matemática, moral, linguagem ou visão? Até onde ele usa recursos compartilhados por outros domínios e até onde ele usa recursos exclusivos? Há conceitos morais que são possíveis sem linguagem? Essa é uma questão muito mais complicada. Por exemplo: há estudos que eu fiz com sagüis mostrando que, no contexto de experimentos de reciprocidade, os macacos são sensíveis não apenas às conseqüências de uma ação mas também à intenção do agente. Um macaco dá comida ao outro. O que recebe tende a cooperar mais com esse indivíduo se a intenção foi dar comida a um custo para si mesmo, sem benefício pessoal aferido, do que se dar a comida for um subproduto de um comportamento egoísta. Isso é muito complicado e é claro que não há linguagem envolvida aí. Eu não acho que a moral será necessariamente derivada da linguagem, mas tenho certeza de que ela utilizará alguns dos mesmos recursos cerebrais.

FOLHA - Há alguns anos o sr. dizia que não havia encontrado nada parecido com moral entre primatas não-humanos. Não há um contínuo evolutivo aqui?
HAUSER
- O que eu devo ter dito é que, na ausência da habilidade de representar as crenças, intenções e os desejos de outros animais, você não poderia ter um grande sistema moral. Isso foi em 1999. Meu próprio trabalho e o de alguns dos meus alunos sobre intencionalidade, representação de crenças, viraram esse jogo. Tudo o que sabemos sobre os precursores relevantes da moral humana vem de estudos com animais.

FOLHA - Por que nós fomos equipados pela evolução com esse sentido da moral?
HAUSER
- Fala-se sobre a moral como sendo uma faculdade que permite negociações e normas sociais. A meu ver, inconscientemente, porque, da mesma forma que, se você tivesse de pensar sobre a estrutura da linguagem a cada vez que você falasse -o que é um verbo, um substantivo, qual combina com qual- você jamais falaria nada. O mesmo vale para as normas sociais. Se você tivesse de pensar nelas o tempo todo, sobre o que é ou não permissível, você congelaria. Uma das vantagens de um sistema inconsciente é que ele dá uma intuição rápida sobre o que é certo e errado em termos de causas e intenção dos agentes "vis-à-vis" ajudar ou fazer mal aos outros. Eu acho que há uma seleção forte para isso, mas como demonstrá-lo é especulação. Nós fizemos tão pouco progresso com a moral quanto com a linguagem aqui, exceto por dizer que, bem, ter normas sociais sobre ajuda e dano é bom para o indivíduo. Colocar as coisas nesse nível é inútil. Então eu não acho que a teoria evolutiva tenha dado ainda previsões sobre a estrutura de nossos julgamentos morais. Embora, num sentido mais solto, ela diga: olhe, nós enquanto espécie desenvolvemos durante a evolução uma capacidade única de cooperação, e somos a única espécie que conhecemos que tem cooperação em grande escala entre indivíduos completamente não-relacionados, e somos a única espécie com evidências fortes de reciprocidade. A questão passa a ser quais foram os mecanismos e as pressões seletivas que permitiram a evolução desses tipos de cooperação, além dos tipos de punição que vemos em humanos e que parecem ser únicos. E aqui as pessoas têm apelado para várias coisas. Por exemplo, o fato de que os humanos mostram um viés de conformidade muito forte, ou seja, nós rotulamos os "do grupo" e os "de fora" de uma maneira que os outros animais não fazem. Humanos também são capazes de praticar formas de punição que implicam custo para eles mesmos numa escala grande, outra coisa que os animais não fazem.

FOLHA - Mas aqui você tem uma questão de ovo e galinha, não? Nós desenvolvemos uma moralidade para viver em grandes grupos ou formamos grandes grupos e então desenvolvemos uma moralidade?
HAUSER
- Para mim está fora de questão que alguns dos tijolos fundamentais de nossos julgamentos morais estavam no lugar muito antes de nos tornarmos uma espécie. Por exemplo: a capacidade de distinguir entre uma ação intencional e uma ação acidental não é específica do domínio moral, mas sem ela não haveria nenhum domínio moral. Se eu te soco, ou se eu tropeço e atinjo você, você se machucou nos dois casos, mas no primeiro caso eu sou responsável pelo meu ato e posso ser punido pela lei e, no segundo, eu no máximo fui descuidado. E essa capacidade está presente em primatas não-humanos. Então a questão passa a ser quando as ações começam a se revestir de aspecto moral. Com o que as crianças nascem equipadas? Elas conseguem julgar questões de dano versus ajuda? Com que idade? Essas são as perguntas que eu faço no livro, porque até agora elas não haviam sido formuladas.

FOLHA - Se todos nós temos essa noção inconsciente de certo e errado, por que não agimos de acordo?
HAUSER
- Em parte porque o que compõe as nossas ações é uma história realmente complicada. Você está andando na rua e de repente vê um sem-teto pedindo dinheiro. Há dias em que você mexe no bolso e dá um trocado para ele. Em outros dias, você simplesmente o ignora. Por quê? Por uma série de razões. É complicado. Mas se eu pergunto a você se é moralmente obrigatório dar dinheiro ao cara na rua, ninguém vai responder que sim. Fenômenos locais podem ter uma influência grande. Um exemplo é um experimento que foi feito há muitos anos. Você trazia pessoas para um laboratório e as fazia sentar por horas numa sala de espera antes de trazê-las para uma sala de testes na qual apenas uma pergunta era feita: numa escala de 1 a 10, o quão boa é a sua vida? Metade dessas pessoas encontrava 25 centavos numa máquina de xerox. A outra metade não. Para a metade que encontrava o dinheiro, a vida era muito melhor. É ridículo! Se esse foco nos julgamentos vai dar num caminho errado é algo ainda a ser visto. Dizer: "Eu vou resolver o problema da moral" é uma piada. Mas deixe-me fazer perguntas específicas sobre a moralidade. Com isso podemos progredir.

FOLHA - Quais são as implicações da sua hipótese para a formulação de políticas públicas? HAUSER - O que o nosso trabalho vai revelar é a natureza das maneiras pelas quais as pessoas abordam julgamentos morais. O tipo de psicologia que entra no senso popular de justiça. Um exemplo concreto é a distinção legal entre eutanásia ativa e eutanásia passiva. Na maior parte dos países, a eutanásia ativa é proibida e a passiva é legalmente apoiada. Há dois países que bloquearam essa decisão: a Bélgica e a Holanda. Eles permitem hoje ambos os tipos de eutanásia, porque dão a decisão a um comitê de médicos e aos membros da família. Isso é importante porque a distinção original é entre uma ação e uma omissão. E nós hoje sabemos que as pessoas percebem as ações como sendo piores que as omissões quando ambas levam ao mesmo dano.
Isso é parte da psicologia, e portanto qualquer tipo de política precisa confrontar qualquer decisão que toque ações versus omissões com isso em mente. É preciso educar crianças e adultos para o fato de que, quando eles se deparam com dilemas assim, tendem a ver as ações como sendo piores que as omissões. E isso pode não ser moralmente justificável.


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