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Gramática da ética
Para o americano Marc Hauser, a separação do bem e do mal tem base biológica
e foi moldada pela evolução
Behrouz Mehri/France Presse
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Casal caminha em avenida de Teerã em frente a mural que exibe pinturas retratando os abusos cometidos por soldados norte-americanos contra presos iraquianos na prisão de Abu Ghraib
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
Considere o seguinte
caso: você está vendo
um bonde passar
num entroncamento
e nota que o maquinista desmaiou. O bonde desgovernado está para atingir e
matar cinco pessoas que estão
andando sobre os trilhos, a menos que você puxe uma alavanca e o desvie. No entanto, na
trajetória do desvio há mais
uma pessoa, e ela morrerá caso
você puxe a alavanca para salvar as outras cinco.
Considere agora a mesma situação. Mas, em vez de um desvio, existe um sujeito de 180
quilos do seu lado que você pode simplesmente empurrar para o trilho. O resultado é o mesmo: uma pessoa morre, cinco
se salvam. Por que, então, a
maioria das pessoas acha que é
permissível agir no primeiro
caso puxando a alavanca e não
no segundo? E por que, quando
instadas a justificar seu julgamento, a maioria das pessoas
tem dificuldade em articular
uma resposta?
O biólogo cognitivo Marc
Hauser, professor de psicologia
da Universidade Harvard
(EUA), tem feito essas perguntas nos últimos anos a filósofos,
cientistas e a voluntários em
um teste elaborado por ele na
internet (moral.wjh.harvard.edu). Ele concluiu que os humanos foram equipados pela
evolução com uma capacidade
de fazer julgamentos morais
seguindo regras universais.
O "instinto da moral" seria
exclusivo de humanos e estaria
alojado numa região específica
do cérebro (que nem ele nem
outros cientistas estabeleceram qual é).
Ele produziria decisões rápidas, baseadas numa "gramática
de ação" inacessível ao consciente. Trocando em miúdos,
os humanos de certa forma já
nascem sabendo o que é certo e
o que é errado, embora não
consigam justificar conscientemente seus julgamentos -e, é
claro, nem sempre ajam de
acordo com eles, como demonstra o abuso de prisioneiros na prisão de Abu Ghraib,
para citar um exemplo recente.
A proposta dessa gramática
moral universal foi detalhada
no livro "Moral Minds" ("Mentes Morais"), lançado nos EUA
em outubro do ano passado.
Ela é apresentada como uma
hipótese em busca de testes,
mas Hauser diz que ela será
testada por uma série de estudos comparativos com animais, bebês e imageamento cerebral.
No livro, Hauser faz uma
analogia entre o sentido da moral e o da linguagem, a partir da
célebre definição de gramática
universal produzida na década
de 1950 pelo lingüista Noam
Chomsky. A dupla tem colaborado nos últimos cinco anos no
desenvolvimento de teorias sobre a origem da linguagem humana -estudos do cientista de
Harvard com sagüis têm acrescentado uma perspectiva evolutiva às idéias de Chomsky à
qual ele próprio resistia.
Da mesma forma como a gramática universal habilita a geração de regras sintáticas
-sem especificar uma linguagem-, o que Hauser chama de
instinto moral produz a base
para comportamentos éticos
sem prescrever uma bula.
No entanto, ela limita a opção de julgamentos morais
possíveis. Há tabus universais,
como o incesto; há uma percepção inata de que ações são
piores que omissões, mesmo
quando levam ao mesmo dano
-algo que, para Hauser, pode
ter implicações na legislação de
práticas como a eutanásia. E há
resquícios do passado evolutivo do Homo sapiens que atuam,
por exemplo, quando pessoas
deixam de fazer doações para o
Unicef que salvariam a vida de
crianças em um país distante.
"A ação à distância gera um
impulso altruísta mais fraco,
porque nossa psicologia não
evoluiu para isso", escreve.
Em entrevista à Folha, Hauser, 46, explica a nova ciência
da biologia da moral.
FOLHA - Falar a um antropólogo
sobre universais morais humanos
fará ele rir da sua cara e contar, por
exemplo, como há casamentos consangüíneos em algumas culturas.
Por que o sr. diz que os humanos
têm um senso moral que evoluiu?
MARC HAUSER - A premissa central do livro é que eu quero fazer uma distinção fundamental
entre julgamento moral, por
um lado, e comportamento
moral, ou o que nós fazemos,
por outro. Invocar todas as
atrocidades do mundo é irrelevante para o meu argumento,
da mesma forma que, para alguém interessado na lingüística formal que Chomsky iniciou
há cerca de 50 anos, o conteúdo
do que as pessoas dizem de fato
é irrelevante para olhar para a
gramática universal.
Portanto, a questão crucial é
que, quando os lingüistas
olham para questões de gramaticalidade da mesma forma que
eu olho para a "eticalidade",
trata-se na verdade da estrutura dos julgamentos que estão
sendo analisados em busca de
dados relevantes. O ponto aqui
é que o que a ciência pode fazer,
agora pelo menos, é olhar para
os padrões de julgamento que
as pessoas fazem como algo
possivelmente muito diferente
do que elas fazem de fato. O fato
de que, no problema do bonde,
nós obtemos respostas que parecem relativamente imunes a
variação cultural não significa
que as pessoas seguirão seus
julgamentos se confrontadas
com o problema na vida real.
FOLHA - Qual é a evidência mais
decisiva para esse "órgão moral" até
agora?
HAUSER - Temos um artigo para
ser publicado na revista "Nature" que mostra déficit seletivo
quando há dano em certas partes do cérebro, que produz um
padrão de julgamento que é
muito diferente do de pessoas
normais. Uma outra coisa na
qual estamos trabalhando são
dados de neuroimagem, mostrando que, por exemplo, quando você se confronta com um
dado dilema moral, você tem
um certo circuito ativado para
as conseqüências, os resultados
utilitários, e outro ativado para
a ação em si. Então, há circuitos
cerebrais diferentes envolvidos
na ativação dos diferentes componentes do órgão moral.
FOLHA - A moralidade não seria
simplesmente um subproduto da
evolução da linguagem?
HAUSER - Eu acho que não. O
que as pessoas estão se perguntando agora na neurologia cognitiva é: quais as computações
que o cérebro faz quando está
em um domínio particular do
conhecimento -seja matemática, moral, linguagem ou visão? Até onde ele usa recursos
compartilhados por outros domínios e até onde ele usa recursos exclusivos? Há conceitos
morais que são possíveis sem
linguagem? Essa é uma questão
muito mais complicada.
Por exemplo: há estudos que
eu fiz com sagüis mostrando
que, no contexto de experimentos de reciprocidade, os
macacos são sensíveis não apenas às conseqüências de uma
ação mas também à intenção
do agente. Um macaco dá comida ao outro. O que recebe tende
a cooperar mais com esse indivíduo se a intenção foi dar comida a um custo para si mesmo,
sem benefício pessoal aferido,
do que se dar a comida for um
subproduto de um comportamento egoísta. Isso é muito
complicado e é claro que não há
linguagem envolvida aí. Eu não
acho que a moral será necessariamente derivada da linguagem, mas tenho certeza de que
ela utilizará alguns dos mesmos
recursos cerebrais.
FOLHA - Há alguns anos o sr. dizia
que não havia encontrado nada parecido com moral entre primatas
não-humanos. Não há um contínuo
evolutivo aqui?
HAUSER - O que eu devo ter dito
é que, na ausência da habilidade de representar as crenças,
intenções e os desejos de outros animais, você não poderia
ter um grande sistema moral.
Isso foi em 1999. Meu próprio
trabalho e o de alguns dos meus
alunos sobre intencionalidade,
representação de crenças, viraram esse jogo. Tudo o que sabemos sobre os precursores relevantes da moral humana vem
de estudos com animais.
FOLHA - Por que nós fomos equipados pela evolução com esse sentido
da moral?
HAUSER - Fala-se sobre a moral
como sendo uma faculdade que
permite negociações e normas
sociais. A meu ver, inconscientemente, porque, da mesma
forma que, se você tivesse de
pensar sobre a estrutura da linguagem a cada vez que você falasse -o que é um verbo, um
substantivo, qual combina com
qual- você jamais falaria nada.
O mesmo vale para as normas sociais. Se você tivesse de
pensar nelas o tempo todo, sobre o que é ou não permissível,
você congelaria. Uma das vantagens de um sistema inconsciente é que ele dá uma intuição rápida sobre o que é certo e
errado em termos de causas e
intenção dos agentes "vis-à-vis" ajudar ou fazer mal aos outros. Eu acho que há uma seleção forte para isso, mas como
demonstrá-lo é especulação.
Nós fizemos tão pouco progresso com a moral quanto com
a linguagem aqui, exceto por dizer que, bem, ter normas sociais sobre ajuda e dano é bom
para o indivíduo. Colocar as
coisas nesse nível é inútil. Então eu não acho que a teoria
evolutiva tenha dado ainda previsões sobre a estrutura de nossos julgamentos morais. Embora, num sentido mais solto, ela
diga: olhe, nós enquanto espécie desenvolvemos durante a
evolução uma capacidade única
de cooperação, e somos a única
espécie que conhecemos que
tem cooperação em grande escala entre indivíduos completamente não-relacionados, e
somos a única espécie com evidências fortes de reciprocidade. A questão passa a ser quais
foram os mecanismos e as pressões seletivas que permitiram a
evolução desses tipos de cooperação, além dos tipos de punição que vemos em humanos e
que parecem ser únicos.
E aqui as pessoas têm apelado para várias coisas. Por
exemplo, o fato de que os humanos mostram um viés de
conformidade muito forte, ou
seja, nós rotulamos os "do grupo" e os "de fora" de uma maneira que os outros animais não
fazem. Humanos também são
capazes de praticar formas de
punição que implicam custo
para eles mesmos numa escala
grande, outra coisa que os animais não fazem.
FOLHA - Mas aqui você tem uma
questão de ovo e galinha, não? Nós
desenvolvemos uma moralidade
para viver em grandes grupos ou
formamos grandes grupos e então
desenvolvemos uma moralidade?
HAUSER - Para mim está fora de
questão que alguns dos tijolos
fundamentais de nossos julgamentos morais estavam no lugar muito antes de nos tornarmos uma espécie. Por exemplo:
a capacidade de distinguir entre uma ação intencional e uma
ação acidental não é específica
do domínio moral, mas sem ela
não haveria nenhum domínio
moral. Se eu te soco, ou se eu
tropeço e atinjo você, você se
machucou nos dois casos, mas
no primeiro caso eu sou responsável pelo meu ato e posso
ser punido pela lei e, no segundo, eu no máximo fui descuidado. E essa capacidade está presente em primatas não-humanos. Então a questão passa a ser
quando as ações começam a se
revestir de aspecto moral. Com
o que as crianças nascem equipadas? Elas conseguem julgar
questões de dano versus ajuda?
Com que idade? Essas são as
perguntas que eu faço no livro,
porque até agora elas não haviam sido formuladas.
FOLHA - Se todos nós temos essa
noção inconsciente de certo e errado, por que não agimos de acordo?
HAUSER - Em parte porque o
que compõe as nossas ações é
uma história realmente complicada. Você está andando na
rua e de repente vê um sem-teto pedindo dinheiro. Há dias
em que você mexe no bolso e dá
um trocado para ele. Em outros
dias, você simplesmente o ignora. Por quê? Por uma série de
razões. É complicado. Mas se
eu pergunto a você se é moralmente obrigatório dar dinheiro
ao cara na rua, ninguém vai responder que sim.
Fenômenos locais podem ter
uma influência grande. Um
exemplo é um experimento
que foi feito há muitos anos.
Você trazia pessoas para um laboratório e as fazia sentar por
horas numa sala de espera antes de trazê-las para uma sala
de testes na qual apenas uma
pergunta era feita: numa escala
de 1 a 10, o quão boa é a sua vida? Metade dessas pessoas encontrava 25 centavos numa
máquina de xerox. A outra metade não. Para a metade que encontrava o dinheiro, a vida era
muito melhor. É ridículo!
Se esse foco nos julgamentos
vai dar num caminho errado é
algo ainda a ser visto. Dizer:
"Eu vou resolver o problema da
moral" é uma piada. Mas deixe-me fazer perguntas específicas
sobre a moralidade. Com isso
podemos progredir.
FOLHA - Quais são as implicações
da sua hipótese para a formulação
de políticas públicas?
HAUSER - O que o nosso trabalho vai revelar é a natureza das
maneiras pelas quais as pessoas
abordam julgamentos morais.
O tipo de psicologia que entra
no senso popular de justiça.
Um exemplo concreto é a distinção legal entre eutanásia ativa e eutanásia passiva. Na
maior parte dos países, a eutanásia ativa é proibida e a passiva é legalmente apoiada. Há
dois países que bloquearam essa decisão: a Bélgica e a Holanda. Eles permitem hoje ambos
os tipos de eutanásia, porque
dão a decisão a um comitê de
médicos e aos membros da família. Isso é importante porque
a distinção original é entre uma
ação e uma omissão. E nós hoje
sabemos que as pessoas percebem as ações como sendo piores que as omissões quando
ambas levam ao mesmo dano.
Isso é parte da psicologia, e
portanto qualquer tipo de política precisa confrontar qualquer decisão que toque ações
versus omissões com isso em
mente. É preciso educar crianças e adultos para o fato de que,
quando eles se deparam com
dilemas assim, tendem a ver as
ações como sendo piores que as
omissões. E isso pode não ser
moralmente justificável.
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