São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2007

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+ Marcelo Leite

Patuléia biológica


Revolução bacteriana ameaça a dicotomia genes vs. ambiente


N ossa maneira de pensar sobre biologia é marcada pelo fenômeno macroscópico da vida, por seres multicelulares. Nessa escala é que fazem sentido pleno os conceitos mais familiares, como organismo, espécie, reprodução sexuada e evolução. Tudo que vive ganhou forma por obra e graça da seleção natural, e Charles Darwin (1809-1882) foi seu maior profeta.
Não para Carl Woese, um iconoclasta dos bons. Em ensaio de apenas uma página no periódico "Nature", ele e Nigel Goldenfeld atacam esse panteão de noções biológicas em nome das mais baixas formas de vida, bactérias -a patuléia biológica, por assim dizer. Na opinião deles, chegou a hora de mudar a linguagem tradicional da biologia, para transformar a própria biologia. Entre outras heresias, encaram "como lamentável a concatenação convencional do nome de Darwin com a evolução, porque outras modalidades também precisam ser consideradas". Mais poder (teórico) para as bactérias.
O ensaio, "A Próxima Revolução da Biologia", é o pioneiro de uma nova seção na influente publicação britânica, "Conexões". A revista promete que, toda semana, cientistas de vários campos tentarão ir além do reducionismo do século 20 para obter novos lampejos e desafiar os conceitos mais aceitos de sua área. Começou bem. Woese e Goldenfeld (W&G) não são movidos por um chavismo unicelular do século 21. Eles chamam a atenção para algo que Stephen Jay Gould também já havia destacado, no livro "Lance de Dados" (2001): bactérias não são apenas a forma provavelmente mais antiga de vida celular, mas também a predominante.
Milhões, bilhões delas vicejam em cada centímetro quadrado que seus descendentes bípedes pisam -ou 100 mil delas na mesma área de pele de um bípede. Povoam a Terra há 3,5 bilhões de anos, metade dos quais solitárias (humanos modernos surgiram há 100 mil ou 200 mil anos). Ocupam todos os nichos, de intestinos a fontes de água fervendo. Sua biomassa total pode ser maior que a de todos os outros seres vivos, na terra e no mar.
O busílis de W&G tem a ver com o fato de que esse tipo preponderante de vida não se reproduz sexuadamente. Bactérias se dividem por mitose, produzindo duas células iguais (clones). Não se aplica a elas, assim, a noção de espécie, que pressupõe indivíduos de uma população cruzando uns com os outros. Sem esse conceito identitário, fica mais complicado conceber evolução como a transformação, por seleção natural, dessas entidades biológicas. Bactérias não fazem sexo, mas fazem coisa muito mais escandalosa: trocam genes entre si. Segundo W&G, coletivamente, em resposta adaptativa ao ambiente. A patuléia, na realidade, topa tudo pela sobrevivência: "Está se tornando claro que microrganismos têm uma notável capacidade de reconstruir seus genomas, em face de estresses ambientais graves, e que em alguns casos suas interações coletivas com vírus podem ser cruciais para isso", escrevem W&G.
"Nessa situação, quão válido é o próprio conceito de um organismo em isolamento? Parece que há uma continuidade de fluxo de energia e de transferência informacional a partir do genoma, por meio de células, comunidade, virosfera e ambiente. Iríamos até mesmo ao ponto de sugerir que uma característica definidora da vida é a forte dependência de um fluxo vindo do ambiente -seja de energia, compostos, metabólitos ou genes." Se a revolução bacteriana triunfar, não sobrará pedra sobre pedra da dicotomia entre genes e ambiente.
MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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