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Neurociência vai a julgamento nos EUA
Jurista estima que mais de cem advogados já usaram imagens de ressonância para tentar atenuar pena de seus clientes
Comunidade acadêmica absolve controverso uso de mapeamento cerebral em tribunal simulado durante encontro científico nos EUA
RAFAEL GARCIA
ENVIADO ESPECIAL A SAN DIEGO
O uso de imagens de mapeamento cerebral em julgamentos está proliferando nos Estados Unidos, e juristas estimam
que mais de cem advogados já
tenham recorrido a elas. Cientistas estão tão preocupados
com o uso -e abuso- dessa
tecnologia que resolveram pôr
ela própria no banco dos réus.
Receosos de que estudos de
neuroimagem estejam sendo
mal interpretados por juízes e
jurados, pesquisadores realizaram um julgamento simulado
há uma semana para testar a receptividade da academia a essa
prática. No fim, a nova "neurociência forense" foi absolvida.
O veredicto, decidido por um
numeroso "júri" de professores
universitários, estudantes e
jornalistas, foi expedido em
San Diego durante o encontro
da AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência).
Todos acompanharam o julgamento de um crime ficcional
em que a defesa evocou imagens de ressonância magnética
como testemunhas.
Se o processo era ficcional,
porém, os personagens que o
interpretaram eram bem reais.
Quem conduziu a simulação foi
o juiz Luis Rodriguez, da Corte
Superior da Califórnia. Representando a acusação estava o
jurista Henry Greely, que arrolou o neurocientista Michael
Rafii, da UCSD (Universidade
da Califórnia em San Diego),
como testemunha. Já o advogado Robert Knaier, a defesa,
convocou outro especialista da
entidade, James Brewer, para
ajudar seu cliente hipotético.
O acusado em questão era
um homem que havia comprovadamente cometido homicídio: usou uma frigideira para
matar sua ex-namorada após
fracassar numa tentativa de
reatar. A missão da defesa era
tentar livrá-lo da acusação de
homicídio intencional e provar
que ele não chegou a premeditar o crime, livrando-o da pena
de morte. Uma extensa lesão
cerebral no córtex frontal
-mostrada por ressonância
magnética- seria a prova de
que ele não teria tido capacidade mental para refletir sobre o
crime antes de cometê-lo.
Sessão aberta
O debate científico, que mais
parecia filme de tribunal, lotou
um dos maiores auditórios do
encontro de ciência mais importante do país. A sessão começou com a arguição do advogado de defesa. Segundo Knaier
argumentou, a lesão cerebral
do acusado o tornava impulsivo
contra sua vontade e o impedia
de planejar suas atitudes.
"Existem teorias relacionando lesões nos lobos frontais
com alterações de personalidade", disse Brewer, sua testemunha especialista. "Isso remonta
a até 1948, com o famoso caso
de Phineas Gage, um ferroviário que sobreviveu a uma lesão
severa nos lobos frontais. Ele se
tornou, contudo, imprevisível,
irreverente, impulsivo e acabou perdendo o emprego."
A tentativa de provar que o
acusado em questão teria o
mesmo perfil de Gage, porém,
foi contestada pela testemunha
técnica da "promotoria". "É
quase impossível dizer algo da
personalidade do indivíduo só
com base em neuroimagem",
afirmou o cientista Rafii. "Em
nossa clínica de neurologia cognitiva, já vimos exames de ressonância mostrando estruturas
cerebrais anormais em pessoas
que não possuem sintomas, e já
vimos estruturas normais em
pessoas com sintomas."
O fato de que a lesão era apenas uma das hipóteses para o
comportamento do acusado,
porém, se reverteu a favor da
defesa, que rejeitou o ônus da
prova. "É o Estado quem precisa provar, para além de uma
margem de dúvida razoável,
que a morte foi premeditada ou
refletida por parte do acusado",
argumentou Knaier. "Se a testemunha da promotoria reconhece que uma lesão no córtex
"pode" afetar o comportamento,
sua alegação ainda está dentro
da margem de dúvida".
Veredicto
Aparentemente convencida
pela argumentação do advogado, a plateia bancou o júri no
fim do evento, pronunciando o
acusado inocente de homicídio
em primeiro grau (premeditado), o crime mais grave. Como
considerou que pelo menos a
"intenção" de matar existiu, o
homem acabou condenado a
homicídio em segundo grau.
Greely, que representou o
promotor derrotado, disse que
na realidade não é contra o uso
da neurociência no tribunal,
mas é preciso cautela. "Existem
pesquisas mostrando que afirmações totalmente ridículas e
ilógicas, se acompanhadas de
frases como "a ciência diz" a
"neurociência mostra", são em
geral aceitas pela maioria das
pessoas leigas", disse.
Para Greely, uma corte deve
pesar a vantagem de provas
tecnicamente complexas contra seus custos. É preciso considerar o tempo gasto com explicações técnicas ao júri, além do
preço de exames como os de
ressonância, que não são baratos. E testemunhas neurocientistas, diz, não estão disponíveis em qualquer lugar.
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