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+ ciência
Humor, ternura e reflexões sobre o choque entre espécies e culturas marcam relato de americano sobre vida com os babuínos na África
As várias faces da alma primata
Alan Marques/Folha Imagem - 19.jul.2000
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Grupo de babuínos jovens se alimenta no Parque Nacional Kruge, África do Sul |
Reinaldo José Lopes
free-lance para a Folha
Quem abrir ao acaso "Memórias de um Primata" corre o risco de se achar inadvertidamente
em meio ao que parece uma versão completamente amalucada (e bastante libertina) do
Antigo Testamento. É o último ano de reinado do bom,
sábio e justo Salomão, que tem em Débora a preferida
de seu harém, embora Rute viva se oferecendo ao monarca, sem sucesso. Os pobres Davi, Benjamim e Josué,
meros adolescentes, não conseguem atrair a atenção
das moças de jeito nenhum e têm de se contentar com a
espionagem das peripécias sexuais dos mais velhos, enquanto se masturbam.
É claro que as "gerações de Israel", como as apelida
com irreverência o neurobiólogo Robert Sapolsky, não
passam de um bando de uns 60 babuínos-verdes (Papio
anubis), perdido num cafundó do Quênia. "Sempre
gostei dos nomes do Antigo Testamento, mas hesitaria
em infligir um nome como Abdias ou Ezequiel a um filho meu. Além do mais, ainda estava irritado pelos anos
que passei carregando os livros da coleção Time-Life
sobre evolução para mostrar a meus professores de hebraico [Sapolsky é judeu], que ficavam brancos diante
de tamanho sacrilégio. Era como uma vingança prazerosa distribuir os nomes dos patriarcas para um bando
de babuínos", explica o pesquisador norte-americano,
ao abrir seu relato de mais de 20 anos de vida ao lado
dos macacos africanos.
Sapolsky foi parar no interior do Quênia em 1978,
quando começou seu trabalho de pós-graduação sobre
a influência das condições sociais e psicológicas de um
animal sobre sua saúde. Bichos sociáveis, inteligentes e
numerosos, os babuínos pareciam alvos ideais para esse
tipo de estudo -e lá se foi o nova-iorquino de 21 anos,
passando a viver numa cabana isolada, tendo como
únicos vizinhos os membros da tribo massai, pastores-guerreiros que foram, por muito tempo, o nome mais
temido da África Oriental.
Desnecessário dizer que a maior parte da comédia (e
algo da tragédia) do livro vem da total incapacidade do
autor para, no começo, lidar com a vida prática no novo
ambiente. Qualquer pessoa que tenha precisado sair de
casa depois de passar a vida inteira num lugar familiar e
aconchegante é capaz de simpatizar com a dieta imutável do pós-graduando (cavala com molho de tomate)
ou com as seguidas vezes em que ele é enrolado por donos de hotéis ou policiais inescrupulosos para pagar
uma nova "taxa" inventada pelo governo na hora.
O mesmo vale para as peripécias de Sapolsky enquanto aprende a manejar dardos tranqüilizantes, indispensáveis para examinar a contagem de hormônios e o estado de saúde dos babuínos. Enternecido ao segurar no
colo sua primeira "vítima", que ressonava, o cientista
não conseguiu escapar de um banho de vômito.
Na verdade, o humor se transforma na ferramenta
ideal para atenuar ao máximo as barreiras entre o mundo humano e o dos babuínos -a começar pelo próprio
pesquisador, que se define no começo como "jovem
macho recém-transferido ao bando". Piadas judaicas à
parte, os nomes bíblicos dão a cada bicho uma cara e
uma personalidade únicas, refletida na teia de relações
que amarra o bando. Os babuínos flertam, fazem amor
e estupram; tramam alianças políticas, tiranizam ou
protegem os mais fracos; e tentam galgar posições no
bando pela malandragem ou pela violência. São, para
usar a expressão consagrada, demasiado humanos.
E o humor, que às vezes vira ironia amarga, ajuda Sapolsky a lidar com o lado sombrio de uma África dilacerada pelo fim do colonialismo, por conflitos tribais que
às vezes viram genocídio e por um isolamento completo das benesses que o século 20 conseguiu trazer para o
resto da humanidade. Ao percorrer parte do continente
como mochileiro, o autor chega muito perto de ser
morto por caminhoneiros com pinta de gângster ou
soldados truculentos. Mas Sapolsky também recorda
de forma divertida e carinhosa a convivência com os
machões massais, com seu apego às tradições de guerreiro, o primeiro passeio de elevador de seu amigo africano Richard na "cidade grande" Nairóbi e sua malfadada tentativa de ensinar evolução humana (usando os
babuínos como exemplo) aos nativos.
A amizade de Sapolsky com as "gerações de Israel"
chega ao fim de forma traumática, com uma epidemia
de tuberculose que leva boa parte dos animais do bando. A causa da mortandade, combatida pelo pesquisador de forma desesperada e infrutífera, foi o uso de carne de boi contaminada com a bactéria da doença por
hotéis da região, cujos lixões eram freqüentados pelos
macacos. O inimigo, dessa vez, eram os interesses econômicos e o conformismo diante de situações irregulares que qualquer habitante do Terceiro Mundo conhece
bem demais -em suaíli, "dunia", algo como "o mundo
é assim mesmo, é assim que as coisas são".
Apesar das piadas e dos episódios assustadores, o que
permanece mesmo depois da leitura do livro é uma impressão de imensa ternura -para com a África e, em
especial, para com essa encruzilhada dos mundos humano e animal que os primatas representam. Sapolsky
cumpre com maestria a missão de lembrar que o orgulhoso Homo sapiens, afinal de contas, ainda é um dos
membros do bando.
Memórias de um Primata
448 págs., R$ 51,00
de Robert M. Sapolsky. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista,
702, cj. 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).
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