São Paulo, domingo, 28 de março de 2010

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+Marcelo Leite

"Amazoniagate"


Todo conhecimento sobre o mundo físico está cheio de buracos


A recomendação já apareceu no blog Ciência em Dia, mas reitero aqui o conselho: quem lê inglês não deve perder o artigo "The clouds of unknowing" (algo como "As nuvens da incerteza"), publicado na revista "The Economist" do dia 18. É um relato ponderado e informativo sobre a controvérsia em torno do aquecimento global.
O texto contém uma classificação inspirada das atitudes pró e contra a influência humana na mudança do clima. De um lado estariam os adeptos do quebra-cabeça. De outro, os que preferem um castelo de cartas.
Todo conhecimento sobre o mundo físico, em especial de um sistema tão complexo quanto o clima da Terra, está cheio de buracos. Quem gosta de quebra-cabeça se acostuma com eles, tira peças daqui e tenta encaixar ali, sem perder de vista o objetivo geral de completar a figura.
Nesse time está a maioria dos que pesquisam o assunto. Um levantamento de 2007 com 489 cientistas da área de meteorologia e geofísica nos EUA, por exemplo, revelou que 97% concordavam que a temperatura média da atmosfera terrestre havia subido no último século e 84%, que a ação humana tinha a ver com isso.
No outro time está o pessoal do castelo de cartas. É aquele tipo que vê em cada falha nos dados ou erro conceitual razão suficiente para desacreditar todo um corpo de evidências -como as muitas em favor do aquecimento global antropogênico. Bastaria tirar uma carta para o castelo desmoronar.
O confronto, em princípio, é bom. Blogueiros "céticos" (negacionistas) contribuem para apertar os controles sobre a qualidade e a interpretação dos dados coletados para comprovar o aquecimento global. A coisa se complica quando um dos lados tenta encaixar uma peça à força no quebra-cabeça ou dá petelecos injustificados numa carta do castelo.
O IPCC (o painel do clima das Nações Unidas) já apanhou bastante por forçar a mão aqui e ali. Fez isso ao citar a ONG ambientalista WWF como fonte de dados científicos -uma vez com erro (geleiras do Himalaia), outra não (risco de "savanização" da Amazônia sob secas sucessivas).
O segundo caso ficou conhecido como "Amazoniagate". Rios de tinta eletrônica correram pelos blogs negacionistas, que saltaram na jugular do IPCC. Como se a citação canhestra aniquilasse por si só a possibilidade de a floresta amazônica se tornar mais parecida com uma savana, caso a mudança do clima traga mais episódios de seca como os de 2005 e 1998.
Ora, há vários artigos científicos a indicar tal risco, não só o malfadado relatório do WWF. Dezenove entre alguns dos mais destacados estudiosos da Amazônia, entre eles os brasileiros Ane Alencar, Paulo Moutinho e Carlos Nobre, chamaram a atenção para isso num comunicado distribuído há dez dias. Mas quem viu?
Pior figura fez a assessoria de imprensa da Universidade de Boston. Para promover um estudo publicado no respeitado periódico "Geophysical Research Letters", trombeteou num comunicado para a imprensa que seus autores "desmontavam mitos sobre a floresta amazônica" espalhados pelo IPCC, como a suscetibilidade à seca.
Parece ficção. O artigo não trata de mortalidade de árvores, mas de seu suposto e paradoxal crescimento na seca de 2005. Os autores, aliás, apresentam novos dados CONTRA a ideia de que as árvores tenham crescido na estiagem, mas mesmo assim o comunicado alardeia: "[A floresta Amazônica] pode ser mais tolerante à seca do que se pensava antes".
Não precisa explicar mais. A gente só queria entender.

MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008).
Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



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