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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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+ciência

CONFLITO DE INTERESSES NA UNIVERSIDADE PÓS-ACADÊMICA

Elise Amedola - 22.mai.2003/Associated Press
Especialistas apresentam uniformes do futuro na abertura do Instituto de Nanotecnologias para Soldados do MIT, que tem a missão de aperfeiçoar trajes de combate



Especialista da Universidade Tufts, nos EUA, denuncia uma crescente promiscuidade entre cientistas e entidades financiadoras de experimentos


Sheldon Krimsky
especial para a "New Scientist"

O físico e especialista em armas Theodore Postol passou boa parte dos últimos 12 meses no centro de uma polêmica acirrada. Em meados dos anos 90, a Agência de Defesa Antimísseis do Pentágono testou alguns sensores especiais desenvolvidos pela empresa TRW. Os sensores foram projetados para distinguir entre ogivas nucleares e ogivas falsas, do tipo que um inimigo poderia utilizar como chamarizes. Naquela época, assim como agora, os cientistas da TRW disseram que o desempenho dos sensores superou as expectativas.
Tendo examinado as medidas originais, Postol discorda da avaliação. Ele afirma não apenas que os testes originais foram falhos, mas que um setor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), para o qual ele próprio trabalha, deixou de expor essas falhas quando o Departamento de Defesa o encarregou de analisar os resultados dos testes. O MIT e a TRW negam as acusações, e o MIT iniciou uma investigação interna.
Sejam quais forem as conclusões do inquérito interno, o conflito de interesses é evidente. Os cientistas de empresas que testam tais tecnologias não usam viseiras mágicas que os impeçam de enxergar o significado comercial de suas descobertas para as empresas que os empregam. E pesquisadores do MIT que avaliam um estudo do Pentágono não podem apagar da consciência o financiamento que o MIT recebe do Pentágono. Não importa quem acabe tendo sua posição confirmada nesse caso específico, o fato é que a ciência que supostamente confirma as alegações originais feitas com relação aos sensores jamais poderia ser descrita como desinteressada.

Cientistas, de modo geral, continuam a não levar muito a sério a idéia de que vínculos de financiamento distorcem seu trabalho

Interesses em alta
À medida que aumentam os vínculos entre interesses comerciais e atividade acadêmica, a chamada pesquisa desinteressada diminui em toda a gama de atividades científicas. A atividade comercial é algo que sempre existiu nas universidades norte-americanas, mas, no passado, os tipos de empreendimento com fins lucrativos vistos pela maioria das universidades como aceitáveis eram limitados por regras que levavam em conta os objetivos distintos de instituições acadêmicas e comerciais. Por sua parte, muitas grandes empresas evitavam formar parcerias com universidades, porque não havia garantias de que seriam protegidos o sigilo comercial e os direitos de propriedade intelectual dos frutos dessas pesquisas. Tudo isso mudou, entretanto, a partir de uma série de medidas governamentais e incentivos à formação de parcerias que foram introduzidos na década de 1980. Apesar disso, os cientistas, de modo geral, continuam a não levar muito a sério a idéia de que vínculos de financiamento distorcem seu trabalho. John Ziman, membro da Royal Society (Reino Unido) e estudioso dos sistemas sociais da ciência, escreveu recentemente que, na universidade moderna (que ele descreve como a universidade "pós-acadêmica"), a pesquisa desinteressada deixou de ser viável ou necessária para proteger a objetividade científica. Apesar disso, diversos estudos começam a confirmar a existência de um chamado "efeito financiamento". Na última semana de agosto o "Journal of the American Medical Association" (jama.ama-assn.org) publicou provas de que testes clínicos aleatórios têm probabilidade maior de apresentar resultados favoráveis à intervenção se tiverem sido financiados por organizações com fins lucrativos. No início do ano, o mesmo periódico publicou uma metaanálise de 37 testes que chegou à conclusão de que "os estudos patrocinados por empresas têm probabilidade significativamente maior do que estudos não patrocinados por elas de chegar a conclusões favoráveis ao patrocinador". Periódicos científicos, associações profissionais e universidades estão, cada vez mais, adotando a transparência como antídoto universal contra tudo isso. Cientistas e periódicos científicos que deixam de divulgar riscos de conflitos de interesse são repreendidos. Em agosto, teve início uma discussão em torno de um artigo publicado na "Nature Neuroscience" (www.nature.com/ neuro) sobre as terapias antidepressivas. O autor principal do artigo, Charles B. Nemeroff, fez uma revisão favorável de um método que utiliza um adesivo que difunde lítio através da pele, além de duas outras terapias. Mas o periódico não revelou o interesse financeiro do autor nas terapias, fato que gerou críticas por parte de outros pesquisadores. Alguns periódicos científicos se recusam a publicar artigos de revisão escritos por autores que possuem vínculos financeiros com seu tema. Essa é, a meu ver, a abordagem correta. A divulgação apenas legitima a prática de misturar comércio e ciência e, implicitamente, torna mais aceitável a queda geral no nível de pesquisa desinteressada. Além disso, ela também entra em choque com a maneira como a sociedade trata conflitos de interesses em assuntos de âmbito público. Imagine um juiz revelando que possui um interesse acionário na penitenciária privada para a qual condena e envia um criminoso a cumprir pena e que, ao aumentar dessa maneira o salário modesto que recebe do governo, estaria também servindo melhor o interesse público.

Questão de confiança
Em lugar de nos contentarmos com a mera divulgação, precisamos adotar princípios que evitem a ocorrência de conflitos de interesse. O papel daqueles que produzem conhecimento científico deve ser mantido separado daqueles que podem se beneficiar financeiramente desse conhecimento. Os cientistas nos quais confiamos para avaliar substâncias tóxicas, terapias, drogas, bens de consumo -ou mesmo novos sistemas de defesa antimísseis- não devem sair do mesmo pool de especialistas que têm interesse financeiro no êxito ou no fracasso desses produtos.
Qualquer coisa aquém disso levará, com o tempo, ao declínio irreparável da confiança que o público deposita na ciência e na medicina. Os cientistas acabarão por ser vistos como apenas mais um grupo de interessados no meio da disputa entre partidos que buscam controlar a informação em defesa de seus interesses próprios. Há mais ou menos 60 anos o sociólogo da ciência Robert Merton escreveu que a pesquisa desinteressada é uma das quatro normas da ciência. Ele tinha razão -e precisamos trazê-la de volta.


Sheldon Krimsky é professor da Universidade Tufts, em Massachusetts (EUA), e acaba de lançar o livro "Science in the Private Interest" (Ciência no Interesse do Privado, editora Rowman & Littlefield)

Tradução de Clara Allain


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