São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2008

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Alegoria póstuma


Último livro de Arthur C. Clarke recicla idéias usadas em outras de suas obras de ficção científica

RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL

O escritor Arthur C. Clarke não acreditava em vida após a morte. Não no sentido espírita do conceito, isto é. Sua visão sobre a evolução biológica guardava, sim, espaço para a sobrevida da consciência humana, na forma de pensamentos arquivados indefinidamente em computadores que "processariam" a vida.
Não foi dessa maneira, porém, que algumas idéias do autor de "2001: Uma Odisséia no Espaço" sobreviveram para além de sua morte, ocorrida no último dia 18 de março. Os capítulos de seu último romance, escrito em parceria com Frederik Pohl, ainda demorariam cinco meses para ganhar corpo, simplesmente porque uma obra literária leva algum tempo para ser editada e impressa.
Foi só quando "The Last Theorem" ("O Último Teorema") chegou às mãos dos leitores do mestre da ficção científica, em agosto, que estes ficaram sabendo que a imortalidade dos pensamentos era um dos temas do livro póstumo.
Alguns dos personagens que aparecem no romance são alienígenas "embutidos em máquinas": uma civilização que tornou seu próprio planeta inabitável, por problemas ambientais, e teve de abrir mão da vida biológica material, passando a sobreviver apenas na forma de uma consciência eletrônica com movimentos robóticos.
Quem se lembra da voz macabra de"HAL-9000", o computador do filme "2001", que acaba de completar 40 anos, vai se dar conta de que conferir consciência a máquinas não foi uma idéia tardia no repertório de Clarke. A maior parte dos delírios tecnológicos e culturais que compõem o pano de fundo de "The Last Theorem", aliás, já haviam sido aproveitadas pelo autor em outros livros.
Na história em parceria com Pohl, viagens espaciais até a órbita baixa da Terra, por exemplo, não são feitas por foguetes. O meio de transporte é um gigantesco elevador que trafega ligado a um cabo vertical de dezenas de quilômetros de altura. A mesma idéia já havia sido o tema de "As Fontes do Paraíso", que Clarke publicou em 1979. De novo, o local escolhido para obra monumental de engenharia fictícia é o Sri Lanka, país que o próprio escritor britânico escolheu para morar a maior parte de sua vida.
O protagonista de "The Last Theorem" também é cingalês. Ranjit Subramanian é um jovem com talento ímpar para matemática; passa os dias elucubrando sobre o chamado "último teorema de Fermat", um problema clássico da teoria dos números. O personagem talvez seja um elemento autobiográfico de Pohl no livro. Ele próprio fora obcecado por enigmas matemáticos na juventude.

Futurismo gratuito
Tendo pouco interesse por política internacional, Ranjit vive em um mundo dominado por EUA, China e Rússia. Esses países se unem para implementar um plano que visa "pacificar" o planeta: uma espécie de bomba eletromagnética é usada para aniquilar o poderio tecnológico de países que insistem em guerrear entre si. Tudo é feito de maneira "limpa", desativando armamentos militares sem matar pessoas.
A história se passa num futuro algumas décadas adiante, sem data definida. E é difícil também definir de que se trata o livro. A trama que liga alienígenas imateriais a charadas matemáticas, elevadores espaciais e diplomacia de guerra acaba soando como o mantra do anglo-cingalês doido.
Por seu trabalho em "2001" e outras obras, Clarke é merecidamente aclamado como o autor que mais contribuiu para elevar a ficção científica ao status de arte no século 20. A história escrita especialmente para ser adaptada pelo cineasta Stanley Kubric oferecia quebra-cabeças filosóficos complexos e narrava drama humano; tinha tudo o que qualquer literatura de alto nível precisa ter. Muito pouco disso, porém, aparece em seu último livro.
Nas suas décadas iniciais como escritor, Clarke teve muitas idéias que anteciparam tecnologias futuras, como os satélites geoestacionários de comunicação que existem hoje. Talvez uma inevitável inércia nostálgica tenha feito o escritor vítima de sua própria genialidade, tentando reafirmar o estereótipo de "visionário" construído em torno de sua figura. Boa parte de "The Last Theorem" se consome na imaginação de cenários futuros para a Terra, mas de forma um pouco gratuita.
O legado de Clarke tem massa de sobra, porém, para que ele não precise de seu último livro para ganhar a eternidade.


LIVRO - "The Last Theorem" Arthur C. Clarke e Frederik Pohl; Del Rey Books; 320 págs.; US$ 27


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