São Paulo, sábado, 28 de outubro de 2006

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Os planetas são de todos, diz Dava Sobel

Jornalista que tentou defender Plutão em comitê de astrônomos trabalha pela reaproximação da ciência com a cultura

Autora de livro que conta a história do conhecimento sobre planetas foi elogiada por religiosos que advogam teoria criacionista recente

Nasa/ESA
Foto do Telescópio Espacial Hubble mostra Lua de Urano e sua sombra (eclipse) no planeta


MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

A jornalista norte-americana Dava Sobel esteve no epicentro do terremoto que, em 24 de agosto deste ano, varreu Plutão do condomínio de nove planetas. Ela fazia parte -a única que não era cientista- do comitê reunido pela UAI (União Astronômica Internacional) para rever a definição de "planeta".
Como seus colegas de comissão, foi voto vencido. A sessão plenária da reunião em Praga (República Tcheca) rebaixou Plutão a "planeta-anão", decisão com a qual Sobel ainda não se conformou de todo.
"Qualquer tipo de definição tem de ser algo arbitrária, e precisa de acordo entre as pessoas sobre o que se quer dizer [com ela]", afirmou em entrevista por telefone. "Está extremamente difícil de alcançar consenso nessa questão." Foi por não se conformar também com o aspecto cada vez mais especializado da astronomia -que muitos acreditam estar na raiz da decisão impopular da UAI- que a jornalista se dedicou a escrever "Os Planetas", lançado no Brasil pela Companhia das Letras (assim como seu "A Filha de Galileu"). O livro traz um capítulo sobre cada planeta, inclusive Plutão (a obra saiu antes da decisão, nos EUA, onde vendeu mais de 180 mil cópias), e até mesmo um dedicado à Lua.
Os puristas poderiam objetar que a Lua não é um planeta e não caberia numa obra com aquele título, mas o capítulo representa mais um sinal da generosidade de Sobel com a astronomia. Dedicou-lhe mais de cinco anos de pesquisa e, para cada astro do Sistema Solar, gigante ou anão, encontrou uma voz narrativa peculiar e dezenas de alusões literárias e históricas -da mitologia à ficção científica, da astrologia à religião (neste caso, chegou a ser confundida com uma defensora da doutrina antidarwiniana de "design inteligente", mas são ossos do ofício).
Numa época em que a maior parte da humanidade vive em cidades nas quais o céu noturno permanece obscuro, ler "Os Planetas" é vê-los reentrar como bólidos na órbita da cultura.
Seja na forma de estática ou de música das esferas, recomenda-se, sim, voltar a ouvir estrelas. Como disse o músico inglês Gustav Holst, citado por Sobel no capítulo sobre Saturno: "A música, sendo idêntica aos céus, não trata de emoções momentâneas ou passageiras. É uma condição de eternidade".
 

FOLHA - Por que a sra. foi a única não-cientista convidada a fazer parte do comitê formado pela União Astronômica Internacional [UAI] para reformar a definição de "planeta"? Seu livro "Os Planetas" foi lançado em outubro de 2005; fico pensando se o sucesso do livro exerceu um papel importante.
DAVA SOBEL
- Acho que foi muito importante. Como parte de minha pesquisa, eu tinha participado das reuniões da divisão de ciência planetária da Sociedade Astronômica Americana por pelo menos cinco anos, talvez mais. Portanto, eu conhecia as pessoas daquela comunidade.

FOLHA - Mas foi uma decisão incomum, não? Não sei de outro caso em que um não-cientista tenha sido eleito para um comitê assim.
SOBEL
- Eu também não (risos). Não sabia no que ia dar, mas foi uma experiência das mais interessantes. Infelizmente, a recomendação do comitê foi derrotada pela assembléia geral da UAI.

FOLHA - Parece que a questão se cristalizou em duas visões opostas: de um lado, a noção de que Plutão poderia e deveria ser mantido como planeta, mesmo ao preço de aumentar o conjunto dos assim chamados planetas, e, de outro lado, a idéia de que não havia nada de especial com Plutão, a ponto de comprometer definições científicas só para não deixá-lo mal, por assim dizer. A sra. acha que essa é uma descrição correta do que opôs o comitê à assembléia geral da UAI?
SOBEL
- Acho que é um pouco distorcido. O que meu comitê estava encarregado de fazer era definir a palavra "planeta", e depois considerar a questão de Plutão no curso de nossa discussão. O objetivo primário era obter uma definição científica de uma palavra que estava em uso por muitos séculos, mas nunca tivera uma definição científica. A verdadeira questão, como a vejo, não era Plutão, mas os novos corpos que estavam sendo descobertos em nosso Sistema Solar e também em torno de outras estrelas. Surgiu a necessidade de um bom sistema de classificação. Não era só Plutão, mas terminou confundido com isso, porque as pessoas têm um apego emocional por Plutão. Quando digo "as pessoas", refiro-me às crianças, aos que não estão necessariamente interessados em astronomia. O nível de emoção era alto. Acho que algumas pessoas que estudam Plutão estavam muito preocupadas com que, se ele fosse reclassificado antes do lançamento da [sonda] New Horizons, a missão de fato pudesse ficar ameaçada, quem sabe até cancelada. A questão de Plutão foi levantada várias vezes nos últimos dez anos. O Planetário Hayden de Nova York tirou Plutão de sua lista de planetas principais.

FOLHA - Qual é a sua explicação para o fato de a assembléia geral não ter endossado o consenso do comitê? Alguém pode imaginar que astrônomos mais "duros" tenham pensado que se estava indo longe demais na direção do público.
SOBEL
- Acho que não. Não creio que tenha sido essa a questão, que estivessem motivados pelo público. Os cientistas mais interessados em dinâmica, na maneira como planetas afetam as órbitas uns dos outros, acharam que seu interesse não estava contemplado na definição. Eles acrescentaram um critério restritivo, que tinha a ver com o fato de um corpo ser capaz de "limpar" sua órbita. E foi com base nesse quesito que Plutão não mais satisfazia a definição. Não creio que o pessoal interessado em dinâmica tenha feito isso por qualquer preocupação com o público, mas com a sua própria área. Outra coisa que aconteceu na reunião foi um problema de programação. Essa questão foi posta em votação bem no final de um encontro muito longo, de duas semanas. Muita gente já tinha ido para casa.

FOLHA - E o pessoal da dinâmica estava todo lá...
SOBEL
- Bem, o pessoal da dinâmica ficou lá tempo suficiente para ter sua preocupação contemplada na definição. A outra questão foi que, no momento em que a votação aconteceu e a definição foi aprovada, os cientistas planetários já tinham ido para casa. Eles ficaram insatisfeitos com a definição, em parte porque Plutão foi excluído, mas também em parte porque há algumas inconsistências reais na formulação. Por exemplo, Plutão é chamado [agora] de "planeta-anão", mas um planeta-anão não é um planeta. Isso cria uma confusão. Uma estrela-anã é uma estrela, uma estrela pequena. Por que então um planeta-anão não é um planeta pequeno? É um grande problema, já nos termos lingüísticos, que terá de ser resolvido.

FOLHA - Qual seria então a solução, chamá-los de "planetóides" ou algo assim?
SOBEL
- Ou de "plutonianos"... Havia algumas palavras que tornariam as coisas claras, [evidenciando] que tais objetos tinham relação uns com os outros. Na nossa definição eles seriam planetas, mas também queríamos assinalar que eles eram de fato diferentes dos outros planetas, em suas órbitas muito longas e inclinadas.

FOLHA - Eles constituiriam uma espécie de subclasse, por assim dizer.
SOBEL
- Exatamente. E a subclasse de planetas-anões, além de ser um termo difícil de entender pelas pessoas, reúne coisas demais. Um corpo como Ceres, o primeiro asteróide a ser descoberto, agora também é um planeta-anão, o que levaria a pensar que Ceres e Plutão têm muito em comum, quando de fato não têm. Meu comitê foi formado porque um comitê mais amplo de cientistas planetários tinha fracassado na obtenção de consenso. Nossa proposta preliminar foi apresentada ao comitê executivo da UAI, e eles a aprovaram, submetendo-a então à assembléia geral. Creio que algo aconteceu, nesse momento, que ofendeu algumas pessoas. De algum modo astrônomos tiveram a sensação de que aquilo estava sendo empurrado para cima deles, que não era realmente uma proposta apresentada para discussão e votação.

FOLHA - A sra. não acha que a preocupação pública também exerceu um papel para exacerbar esse sentimento nas pessoas que estavam na assembléia?
SOBEL
- De que eles quisessem dizer que o público não podia lhes ditar o que fazer?

FOLHA - Em poucas palavras.
SOBEL
- Eu não tive essa sensação, mas bem que você poderia estar certo.

FOLHA - Mas como a não-cientista do comitê, a sra. sentiu a necessidade de levar em conta a preocupação do público?
SOBEL
- O comitê como um todo recebeu um encargo do comitê executivo da UAI, que dizia especificamente para considerar a questão de Plutão e a percepção pública sobre ela. Mas nós estávamos absolutamente esclarecidos de que a definição teria de ser científica, de que não teríamos de manter Plutão apenas porque o público ficaria contrariado. Isso nunca foi uma questão para ninguém.

FOLHA - Também porque não seria factível. Afinal era um comitê científico, que tinha de chegar a uma definição defensável.
SOBEL
- Exatamente. Todos tinham claro que os planetas pertencem a todo mundo. Mas o cerne de uma definição é capacitar as pessoas que trabalham nesse campo a ter uma compreensão e uma base para discutir. Ninguém estava ali para pegar Plutão de jeito, mas foi percebido dessa maneira.

FOLHA - Por outro lado, não creio que essa forma de concessão da UAI diante do público seja muito comum. O que a sra. acha desse gênero de abertura de uma comunidade técnica para o público?
SOBEL
- É o que venho fazendo toda a minha vida. Lembro-me de Carl Sagan explicando seu trabalho para uma audiência popular. Ele dedicava uma tremenda quantidade de tempo a isso. Sua idéia era a de que cientistas são financiados por fundos públicos e, portanto, devem ao público um relato de como usaram o dinheiro. Ele acreditava que 10% de seu tempo deveria ser dedicado a essa abertura e ao entendimento público da ciência.

FOLHA - Mas não se vêem muitos Carl Sagans por aí. Ele é admirado por todo cientista que eu conheço, mas não são muitos os que seguem seu exemplo. A ciência está se afastando muito do público, de certa maneira. Há uma pequena parcela do público que está interessada em ciência, em qualquer tempo -é só para eles que escrevemos?
SOBEL
- Esses são os mais fáceis de atingir. Tenho a esperança de conseguir atingir aqueles que não estão interessados em ciência.

FOLHA - Para finalizar, uma pergunta pessoal: a sra. é uma pessoa religiosa?
SOBEL
- Não...

FOLHA - Pergunto isso porque há passagens no capítulo sobre o Sol, intitulado "Gênese"...
SOBEL
- É um capítulo muito religioso...

FOLHA - ...em que fiquei com essa impressão.
SOBEL
- Estou contente que você tenha perguntado. Quando estava escrevendo "A Filha de Galileu", tive contatos tão próximos com freiras que praticamente me tornei católica (risos). Fiquei absorvida na religião católica porque era muito importante para o assunto do livro. Nasci judia, mas não posso dizer que fui criada como judia, só em sentido cultural. Quando eu escrevia aquele capítulo, usei a linguagem do Gênese, muitas referências religiosas. A coincidência do eclipse total do Sol tem sido usada como um argumento em favor do design inteligente.

FOLHA - É mesmo?
SOBEL
- Sim. Por que um planeta habitado tem um satélite com o tamanho e a posição exatos para criar esse efeito miraculoso? É uma coincidência atordoante. Para algumas pessoas é coincidência demais. Eu toquei nessa questão. O engraçado é que, por causa dessa passagem, ganhei um prêmio de uma revista religiosa, que escolheu meu livro como um dos dez melhores de ciência no ano, porque fornecia novo apoio para a idéia de design inteligente.


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