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Os planetas são de todos, diz Dava Sobel
Jornalista que tentou defender Plutão em comitê de astrônomos trabalha pela reaproximação da ciência com a cultura
Autora de livro que conta a
história do conhecimento
sobre planetas foi elogiada
por religiosos que advogam
teoria criacionista recente
Nasa/ESA
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Foto do Telescópio Espacial Hubble mostra Lua de Urano e sua sombra (eclipse) no planeta |
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
A jornalista norte-americana
Dava Sobel esteve no epicentro
do terremoto que, em 24 de
agosto deste ano, varreu Plutão
do condomínio de nove planetas. Ela fazia parte -a única que
não era cientista- do comitê
reunido pela UAI (União Astronômica Internacional) para rever a definição de "planeta".
Como seus colegas de comissão, foi voto vencido. A sessão
plenária da reunião em Praga
(República Tcheca) rebaixou
Plutão a "planeta-anão", decisão com a qual Sobel ainda não
se conformou de todo.
"Qualquer tipo de definição
tem de ser algo arbitrária, e
precisa de acordo entre as pessoas sobre o que se quer dizer
[com ela]", afirmou em entrevista por telefone. "Está extremamente difícil de alcançar
consenso nessa questão."
Foi por não se conformar
também com o aspecto cada
vez mais especializado da astronomia -que muitos acreditam estar na raiz da decisão impopular da UAI- que a jornalista se dedicou a escrever "Os
Planetas", lançado no Brasil pela Companhia das Letras (assim como seu "A Filha de Galileu"). O livro traz um capítulo
sobre cada planeta, inclusive
Plutão (a obra saiu antes da decisão, nos EUA, onde vendeu
mais de 180 mil cópias), e até
mesmo um dedicado à Lua.
Os puristas poderiam objetar
que a Lua não é um planeta e
não caberia numa obra com
aquele título, mas o capítulo representa mais um sinal da generosidade de Sobel com a astronomia. Dedicou-lhe mais de
cinco anos de pesquisa e, para
cada astro do Sistema Solar, gigante ou anão, encontrou uma
voz narrativa peculiar e dezenas de alusões literárias e históricas -da mitologia à ficção
científica, da astrologia à religião (neste caso, chegou a ser
confundida com uma defensora da doutrina antidarwiniana
de "design inteligente", mas são
ossos do ofício).
Numa época em que a maior
parte da humanidade vive em
cidades nas quais o céu noturno
permanece obscuro, ler "Os
Planetas" é vê-los reentrar como bólidos na órbita da cultura.
Seja na forma de estática ou de
música das esferas, recomenda-se, sim, voltar a ouvir estrelas. Como disse o músico inglês
Gustav Holst, citado por Sobel
no capítulo sobre Saturno: "A
música, sendo idêntica aos
céus, não trata de emoções momentâneas ou passageiras. É
uma condição de eternidade".
FOLHA - Por que a sra. foi a única
não-cientista convidada a fazer parte do comitê formado pela União
Astronômica Internacional [UAI] para reformar a definição de "planeta"? Seu livro "Os Planetas" foi lançado em outubro de 2005; fico pensando se o sucesso do livro exerceu
um papel importante.
DAVA SOBEL - Acho que foi muito
importante. Como parte de minha pesquisa, eu tinha participado das reuniões da divisão de
ciência planetária da Sociedade
Astronômica Americana por
pelo menos cinco anos, talvez
mais. Portanto, eu conhecia as
pessoas daquela comunidade.
FOLHA - Mas foi uma decisão incomum, não? Não sei de outro caso
em que um não-cientista tenha sido
eleito para um comitê assim.
SOBEL - Eu também não (risos).
Não sabia no que ia dar, mas foi
uma experiência das mais interessantes. Infelizmente, a recomendação do comitê foi derrotada pela assembléia geral da
UAI.
FOLHA - Parece que a questão se
cristalizou em duas visões opostas:
de um lado, a noção de que Plutão
poderia e deveria ser mantido como
planeta, mesmo ao preço de aumentar o conjunto dos assim chamados planetas, e, de outro lado, a
idéia de que não havia nada de especial com Plutão, a ponto de comprometer definições científicas só
para não deixá-lo mal, por assim dizer. A sra. acha que essa é uma descrição correta do que opôs o comitê
à assembléia geral da UAI?
SOBEL - Acho que é um pouco
distorcido. O que meu comitê
estava encarregado de fazer era
definir a palavra "planeta", e
depois considerar a questão de
Plutão no curso de nossa discussão. O objetivo primário era
obter uma definição científica
de uma palavra que estava em
uso por muitos séculos, mas
nunca tivera uma definição
científica. A verdadeira questão, como a vejo, não era Plutão, mas os novos corpos que
estavam sendo descobertos em
nosso Sistema Solar e também
em torno de outras estrelas.
Surgiu a necessidade de um
bom sistema de classificação.
Não era só Plutão, mas terminou confundido com isso, porque as pessoas têm um apego
emocional por Plutão. Quando
digo "as pessoas", refiro-me às
crianças, aos que não estão necessariamente interessados em
astronomia. O nível de emoção
era alto.
Acho que algumas pessoas
que estudam Plutão estavam
muito preocupadas com que, se
ele fosse reclassificado antes do
lançamento da [sonda] New
Horizons, a missão de fato pudesse ficar ameaçada, quem sabe até cancelada. A questão de
Plutão foi levantada várias vezes nos últimos dez anos. O Planetário Hayden de Nova York
tirou Plutão de sua lista de planetas principais.
FOLHA - Qual é a sua explicação para o fato de a assembléia geral não
ter endossado o consenso do comitê? Alguém pode imaginar que astrônomos mais "duros" tenham
pensado que se estava indo longe
demais na direção do público.
SOBEL - Acho que não. Não
creio que tenha sido essa a
questão, que estivessem motivados pelo público. Os cientistas mais interessados em dinâmica, na maneira como planetas afetam as órbitas uns dos
outros, acharam que seu interesse não estava contemplado
na definição. Eles acrescentaram um critério restritivo, que
tinha a ver com o fato de um
corpo ser capaz de "limpar" sua
órbita. E foi com base nesse
quesito que Plutão não mais satisfazia a definição. Não creio
que o pessoal interessado em
dinâmica tenha feito isso por
qualquer preocupação com o
público, mas com a sua própria
área.
Outra coisa que aconteceu na
reunião foi um problema de
programação. Essa questão foi
posta em votação bem no final
de um encontro muito longo,
de duas semanas. Muita gente
já tinha ido para casa.
FOLHA - E o pessoal da dinâmica estava todo lá...
SOBEL - Bem, o pessoal da dinâmica ficou lá tempo suficiente
para ter sua preocupação contemplada na definição. A outra
questão foi que, no momento
em que a votação aconteceu e a
definição foi aprovada, os cientistas planetários já tinham ido
para casa. Eles ficaram insatisfeitos com a definição, em parte
porque Plutão foi excluído, mas
também em parte porque há algumas inconsistências reais na
formulação. Por exemplo, Plutão é chamado [agora] de "planeta-anão", mas um planeta-anão não é um planeta. Isso cria
uma confusão. Uma estrela-anã é uma estrela, uma estrela
pequena. Por que então um
planeta-anão não é um planeta
pequeno? É um grande problema, já nos termos lingüísticos,
que terá de ser resolvido.
FOLHA - Qual seria então a solução,
chamá-los de "planetóides" ou algo
assim?
SOBEL - Ou de "plutonianos"...
Havia algumas palavras que
tornariam as coisas claras, [evidenciando] que tais objetos tinham relação uns com os outros. Na nossa definição eles seriam planetas, mas também
queríamos assinalar que eles
eram de fato diferentes dos outros planetas, em suas órbitas
muito longas e inclinadas.
FOLHA - Eles constituiriam uma espécie de subclasse, por assim dizer.
SOBEL - Exatamente. E a subclasse de planetas-anões, além
de ser um termo difícil de entender pelas pessoas, reúne
coisas demais. Um corpo como
Ceres, o primeiro asteróide a
ser descoberto, agora também
é um planeta-anão, o que levaria a pensar que Ceres e Plutão
têm muito em comum, quando
de fato não têm.
Meu comitê foi formado porque um comitê mais amplo de
cientistas planetários tinha fracassado na obtenção de consenso. Nossa proposta preliminar foi apresentada ao comitê
executivo da UAI, e eles a aprovaram, submetendo-a então à
assembléia geral. Creio que algo aconteceu, nesse momento,
que ofendeu algumas pessoas.
De algum modo astrônomos tiveram a sensação de que aquilo
estava sendo empurrado para
cima deles, que não era realmente uma proposta apresentada para discussão e votação.
FOLHA - A sra. não acha que a preocupação pública também exerceu
um papel para exacerbar esse sentimento nas pessoas que estavam na
assembléia?
SOBEL - De que eles quisessem
dizer que o público não podia
lhes ditar o que fazer?
FOLHA - Em poucas palavras.
SOBEL - Eu não tive essa sensação, mas bem que você poderia
estar certo.
FOLHA - Mas como a não-cientista
do comitê, a sra. sentiu a necessidade de levar em conta a preocupação
do público?
SOBEL - O comitê como um todo recebeu um encargo do comitê executivo da UAI, que dizia especificamente para considerar a questão de Plutão e a
percepção pública sobre ela.
Mas nós estávamos absolutamente esclarecidos de que a definição teria de ser científica, de
que não teríamos de manter
Plutão apenas porque o público
ficaria contrariado. Isso nunca
foi uma questão para ninguém.
FOLHA - Também porque não seria
factível. Afinal era um comitê científico, que tinha de chegar a uma definição defensável.
SOBEL - Exatamente. Todos tinham claro que os planetas
pertencem a todo mundo. Mas
o cerne de uma definição é capacitar as pessoas que trabalham nesse campo a ter uma
compreensão e uma base para
discutir. Ninguém estava ali para pegar Plutão de jeito, mas foi
percebido dessa maneira.
FOLHA - Por outro lado, não creio
que essa forma de concessão da UAI
diante do público seja muito comum. O que a sra. acha desse gênero de abertura de uma comunidade
técnica para o público?
SOBEL - É o que venho fazendo
toda a minha vida. Lembro-me
de Carl Sagan explicando seu
trabalho para uma audiência
popular. Ele dedicava uma tremenda quantidade de tempo a
isso. Sua idéia era a de que cientistas são financiados por fundos públicos e, portanto, devem
ao público um relato de como
usaram o dinheiro. Ele acreditava que 10% de seu tempo deveria ser dedicado a essa abertura e ao entendimento público
da ciência.
FOLHA - Mas não se vêem muitos
Carl Sagans por aí. Ele é admirado
por todo cientista que eu conheço,
mas não são muitos os que seguem
seu exemplo. A ciência está se afastando muito do público, de certa
maneira. Há uma pequena parcela
do público que está interessada em
ciência, em qualquer tempo -é só
para eles que escrevemos?
SOBEL - Esses são os mais fáceis
de atingir. Tenho a esperança
de conseguir atingir aqueles
que não estão interessados em
ciência.
FOLHA - Para finalizar, uma pergunta pessoal: a sra. é uma pessoa
religiosa?
SOBEL - Não...
FOLHA - Pergunto isso porque há
passagens no capítulo sobre o Sol,
intitulado "Gênese"...
SOBEL - É um capítulo muito
religioso...
FOLHA - ...em que fiquei com essa
impressão.
SOBEL - Estou contente que você tenha perguntado. Quando
estava escrevendo "A Filha de
Galileu", tive contatos tão próximos com freiras que praticamente me tornei católica (risos). Fiquei absorvida na religião católica porque era muito
importante para o assunto do
livro. Nasci judia, mas não posso dizer que fui criada como judia, só em sentido cultural.
Quando eu escrevia aquele capítulo, usei a linguagem do Gênese, muitas referências religiosas. A coincidência do eclipse total do Sol tem sido usada
como um argumento em favor
do design inteligente.
FOLHA - É mesmo?
SOBEL - Sim. Por que um planeta habitado tem um satélite
com o tamanho e a posição exatos para criar esse efeito miraculoso? É uma coincidência
atordoante. Para algumas pessoas é coincidência demais. Eu
toquei nessa questão. O engraçado é que, por causa dessa passagem, ganhei um prêmio de
uma revista religiosa, que escolheu meu livro como um dos
dez melhores de ciência no ano,
porque fornecia novo apoio para a idéia de design inteligente.
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