|
Próximo Texto | Índice
CIÊNCIA
Ambientalista discute formas de proteção e o futuro do planeta
Estado do mundo
Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
|
Lester Brown, do Worldwatch Institute, no Rio de Janeiro |
MARCELO LEITE
especial para a Folha
Lester Brown, 65, tem dois filhos, uma bicicleta e nenhum carro. Coisa tão rara para um norte-americano quanto um ambientalista admitir que não tem posição
formada sobre os alimentos
transgênicos (de preferência, contra). Essa franqueza não impede
que o presidente do prestigiado
"think tank" ambiental Worldwatch Institute, de Washington,
seja ouvido por muitos.
Da mais verde organização não-governamental (ONG) aos altos
escalões dos governos e da ONU,
todos prestam atenção quando
ele faz previsões e estimativas
-como a de que 480 milhões de
pessoas no mundo estão sendo
alimentadas de modo insustentável. Segundo Brown, eles vivem
de grãos irrigados com água extraída além da capacidade de reposição de lençóis freáticos.
São muitas as coisas que preocupam Brown, da crescente preocupação entre cientistas com o
derretimento de geleiras pelo
mundo à epidemia de Aids na
África. A série de alarmes é soada
pelo Worldwatch todos os anos
com o volume "Estado do Mundo", uma bíblia ambiental que
vende mais de 1 milhão de exemplares. A edição de 1999 -que
traz dados de 1998 e foi lançada há
dez dias no Brasil- trouxe
Brown ao país. Ela pode ser encomendada pela Internet
(www.worldwatch.org.br).
Leia na entrevista abaixo por
que Lester Brown considera que,
apesar de muitas de suas previsões catastróficas não se verificarem, as ONGs terão um papel
mais importante a cada dia. E
uma boa notícia: em matéria de
catástrofes naturais, 1999 será menos ruim que 1998.
Folha - No Brasil muitas pessoas acreditam que exista um
dilema: ou se protege a Amazônia, ou se investe na melhoria
da qualidade de vida nas cidades. Se o sr. fosse obrigado a estabelecer uma prioridade, por
onde começaria?
Lester Brown - Não é realmente
uma questão de optar por uma
coisa ou outra. Vou lhe dar um
exemplo. Em muitos lugares do
mundo tentamos proteger ecossistemas, construímos cercas em
volta de parques ou reservas naturais. Mas, se não pudermos estabilizar o clima, não haverá um
(único) ecossistema que possamos preservar. Em muitos países,
como na África, temos parques
com cercas, mas, se não conseguirmos estabilizar a população,
essas cercas não ficarão de pé.
Folha - Mas o sr. não acha que
a questão populacional se encaminha sozinha para um cenário
de estabilização? Muitas das
previsões catastróficas não se
verificaram. As projeções sobre
crescimento da população vêm
sendo revisadas para baixo pela
ONU, porque ninguém foi capaz
de prever que a taxa de fecundidade cairia tão rapidamente.
Brown - Acredito que, no final
das contas, há muito mais gente
preocupada com as questões ambientais hoje do que havia em
1972, por exemplo. O que é novo é
que nas últimas projeções populacionais da ONU, atualizadas de
dois em dois anos, pela primeira
vez parte da redução no crescimento populacional vem do aumento da mortalidade. Eles reduziram a população projetada para
2050, no cenário médio, de 9,4 bilhões para 8,9 bilhões, na sua última revisão. Dois terços dessa redução por causa da queda na fertilidade, mas um terço por causa
da mortalidade em ascensão.
Folha - Como na África, com a
Aids, e na Rússia, com a crise?
Brown - De forma mais importante na África. É por isso que
pessoas como (Paul) Ehrlich escreveram coisas como "A Bomba
da População", 30 anos atrás.
Lembro de uma resenha do livro
de Rachel Carson, "Primavera Silenciosa", dizendo que suas projeções estavam erradas porque
seu prognóstico estava certo.
O que nós tentamos fazer é dizer o que poderia acontecer se as
tendências da última década ou
dos últimos 25 anos continuarem
no futuro, quais são as consequências esperadas, e então as
pessoas decidem se querem que
essas tendências continuem. Torna-se parte do processo político.
Se voltarmos e olharmos as projeções que eram feitas 25 ou 30
anos atrás, veremos que uma série
de questões nem mesmo apareciam. "Limites do Crescimento"
(Clube de Roma) não falava muito de aquecimento global. Mas
você tem de lembrar que houve
uma enorme reação mundial a
"Limites do Crescimento", que
desencadeou centenas de conferências, estudos e reavaliações.
Folha - Existe aqui a percepção de que o interesse público
em questões ambientais vem
declinando. Isso pode ter a ver
com o fato de que o país está
mais ocupado com gerar divisas
para aplacar a sede de juros e
de credibilidade em Wall Street.
Essa acumulação de capital pode estar sendo feita, em certo
sentido, à custa do aumento da
pobreza e da degradação ambiental em países como o Brasil?
Brown - Nós não herdamos a
Terra de nossos ancestrais, nós a
tomamos emprestado de nossos
filhos. Um economista que considere os preços de grãos, hoje, vai
dizer que o problema é superprodução, que devemos ter maior capacidade do que demanda efetiva.
Num certo sentido o economista
estará certo, mas noutro sentido,
muito importante, está errado.
Nós estimamos, no "Estado do
Mundo", que a quantidade de
grãos produzida graças ao rebaixamento dos lençóis freáticos,
por excesso de bombeamento para irrigação, totaliza cerca de 160
milhões de toneladas. O bastante
para alimentar 480 milhões de
pessoas, pela média global de
consumo. Isso não é sustentável.
Folha - É uma externalidade,
como dizem os economistas, um
recurso que está sendo retirado
do ambiente e cujo custo de reposição não está sendo pago.
Brown - Uma das razões pelas
quais a economia do mundo vai
tão bem nas últimas décadas é
que só estamos pagando parte do
custo dos combustíveis fósseis.
Mas as gerações futuras terão de
se haver com a mudança climática, com a elevação do nível dos
mares, terão de pagar esse custo.
Folha - E o ano de 1999? Qual
é a idéia que vocês estão formando sobre ele, em comparação com 1998? O sr. acredita
que este ano deverá ser pior
que os precedentes, em termos
de desastres naturais, fortalecendo a tendência do aquecimento global?
Brown - O que estamos vendo
em 1999, mais claramente do que
nunca antes, é a evidência de
apoio ao aquecimento global na
forma de derretimento de geleiras. Parece haver relatos chegando de todas as partes do mundo.
O derretimento está se acelerando. Os cientistas que estudam isso
estão ficando alarmados, do mesmo modo que em 1985 os cientistas ficaram alarmados com o buraco do ozônio na Antártida.
Uma geleira no leste do Himalaia recuou meia milha (cerca de
800 metros) desde 1990.
Há muitas coisas começando a
aparecer, e há mais e mais relatos
de coisas saindo do gelo, seja um
enorme mamute peludo na Sibéria, suas presas para fora da neve,
ou o homem do gelo nos Alpes.
Folha - Mas isso entre cientistas. Quando se trata do público
em geral, os srs. usaram no livro
de 1999 um argumento poderoso: a cada ano, mais pessoas são
afetadas por desastres naturais
que poderiam ser atribuídos à
mudança climática, como enchentes e furacões. Nesse sentido, o sr. tem alguma indicação
de que 1999 será pior do que
1998, confirmando uma tendência de agravamento?
Brown - Por esses indicadores,
1998 foi um caso à parte. Nós trabalhamos com a empresa de resseguros Munich para desenvolver
estimativas de danos relacionados com clima. Ficamos espantados, mais ou menos a esta altura
do ano passado: esses danos em
escala mundial chegavam a US$
92 bilhões, mais do que em toda a
década de 80. O número não cabia no gráfico. Este ano não será
nem de longe tão alto.
Folha - Alguma outra tendência de 1999 que será destacada
no "Estado do Mundo" de 2000?
Brown - Uma que se destaca é a
epidemia de Aids na África subsaariana, que realmente está explodindo em cena. Estamos tentando já há dois anos atrair atenção pública para isso.
Nossa preocupação é que os governos estão sendo sobrecarregados com esse rápido crescimento
populacional, tentando educar
todo mundo, achar empregos para todos que chegam ao mercado,
tratar das consequências ambientais, como desmatamento e erosão do solo. Estão tão estressados
que, quando surge um novo problema como o vírus HIV, talvez
não sejam mais capazes de reagir.
Um exemplo: companhias operando no Zimbábue de repente
descobriram que suas despesas
com seguro-saúde estavam duplicando, triplicando. Acho que isso
vai cortar o fluxo de investimentos estrangeiros na África subsaariana, por causa do simples custo
de lidar com esse problema. Em
alguns hospitais da África do Sul,
70% dos leitos são ocupados por
pacientes de Aids. No Zimbábue,
50% do orçamento para saúde vai
para tratar pacientes de Aids.
Folha - ONGs não são eleitas,
não há meios de controlar institucionalmente o que fazem e se
de fato representam o interesse
público. Esse é um tema de discussão entre ONGs, como torná-las mais sujeitas à prestação de
contas para o público?
Brown - A emergência das
ONGs, em certo sentido, é resultado das deficiências dos governos. Governos não satisfazem
certas necessidades sociais, nas
quais as ONGs estão dispostas a
ajudar. Ao mesmo tempo, há um
certo dilema, porque ONGs são
uma maneira de estender a democracia, de dar às pessoas uma
outra voz, particularmente quando o sistema político se tornou
corrupto.
Lembro de um encontro com
um ministro do Ambiente da
Rússia, há muitos anos, um antigo ambientalista. Na realidade,
era o ministro soviético do Ambiente. Ele disse que achava o
Worldwatch uma organização assustadora, porque era um punhado de gente em Washington D.C.
influenciando políticas e decisões
públicas pelo mundo inteiro.
Ele perguntou: a quem vocês
prestam contas? Acho que a resposta é que uma ONG socialmente irresponsável encontraria dificuldade em levantar fundos, pois
muito do financiamento vem de
fundações que também têm responsabilidade social.
Mas é uma questão interessante, que vai se tornar ainda mais interessante no futuro, quando as
ONGs desempenharem um papel
mais proeminente. Uma razão
para sermos tão reconhecidos como somos é que nenhuma agência da ONU ou de governo está
produzindo o tipo de informação
ambiental que o mundo precisa.
Próximo Texto: Livros Índice
|