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MICRO/MACRO
Ciência, ética e imortalidade
MARCELO GLEISER
especial para a Folha
A pesquisa, tanto nas universidades quanto nas indústrias, é financiada por uma combinação
de fundos oriundos do governo
e da iniciativa privada, isto é, a
própria indústria. Daí que existe
uma subdivisão não muito clara
entre dois "tipos" de pesquisa, a
básica e a aplicada.
Em princípio, a pesquisa básica seria a que não tem em vista
sua aplicação imediata na criação e no aperfeiçoamento de tecnologias, estando mais preocupada em entender os fenômenos
naturais. A pesquisa aplicada é,
também em princípio, direcionada ao mercado, à criação de
novas tecnologias que darão lucro para empresas ou independência tecnológica ao Estado.
Na prática, as fronteiras entre
pesquisa básica e aplicada são
difíceis, em muitos casos, de ser
separadas. Daí que é muito comum certos projetos terem um
financiamento híbrido. Projetos
financiados pelo Estado, como
os que vem fazendo a Fapesp
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), aliás
exemplarmente, podem ter aplicações futuras no mercado, como o Projeto Genoma, que busca o mapeamento genético do
ser humano. Há o lado da pesquisa básica, a compreensão de
nossa estrutura genética, e o lado aplicado, como a cura de
doenças, que dependerá de procedimentos médicos que gerarão lucro.
Certas áreas de pesquisa têm
um impacto imediato na sociedade. Dois exemplos importantes são a pesquisa na física nuclear e na área da engenharia genética. Em ambos os casos, há financiamento do governo e privado. Em ambos os casos, há a
possibilidade de lucro. Na pesquisa nuclear, o lucro pode vir
da geração de energia e das inúmeras aplicações médicas. No
caso da engenharia genética, das
várias aplicações na indústria de
alimentos e na medicina. Em
ambos os casos, as novas tecnologias podem ser usadas para
destruir. A ciência tem o lado luz
e o lado sombra.
Em um futuro não muito distante, vamos poder clonar seres
humanos, cópias idênticas de
você. Poderemos também criar
"fazendas humanas", verdadeiras plantações de seres destinados apenas a nos prover com órgãos para transplantes. Esses seres seriam criados com cérebros
atrofiados, primitivos, e não se
oporiam a nada, como galinhas
no matadouro. Eles seriam humanos? Quem teria direito de
decidir isso? Um clone seu será
mais ou menos humano que você? Esse clone não será "você"
sob o ponto de vista psicológico,
não terá suas memórias etc. Mas
ele/ela poderá aprender tudo a
seu respeito. E, se for possível
construir um clone que não envelheça rápido (um problema
que aflige os clones animais de
agora), você poderá existir indefinidamente: imortalidade genética! É só ir de clone em clone...
Num futuro um pouco mais
distante, talvez sejamos capazes
de captar a essência do seu consciente, a informação neuronal
do seu cérebro, o que você é, em
um hipercomputador, um híbrido de tecidos orgânicos com
chips rápidos. As pessoas poderão conversar com esse computador, que terá a sua voz. Quem é
esse computador? Você? Existe
então a possibilidade de uma
imortalidade não só genética,
mas também computadorizada,
um programa que será a sua essência e que, em princípio, poderá existir para sempre. Você
será uma máquina imortal.
Essas realidades meio que fantásticas ainda não existem. Mas
elas poderão vir a existir, mais
cedo do que nós pensamos. Seria inútil tentarmos controlar de
alguma forma o progresso da
pesquisa, genética ou qualquer
outra. Ela irá acontecer do mesmo jeito, se não oficialmente,
clandestinamente, o que é muito
pior. Os cientistas têm o dever de
alertar a população do impacto
imediato e projetado de suas
descobertas, sejam elas financiadas pela indústria ou pelo Estado: algumas questões vão além
do lucro. Aqui entra a ética da
ciência, na democratização da
informação pela pesquisa. O debate do nosso futuro como espécie pertence a todos.
Marcelo Gleiser é professor de física do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e
autor do livro "Retalhos Cósmicos".
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