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OPINIÃO
O fim da era dos contratos?
RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O clone mexe diretamente com
nosso imaginário. Antes da ovelha Dolly, já se pensava em duplicar as pessoas. Lembremos uns
dez anos atrás, quando Calvin,
das histórias em quadrinhos, produziu vários clones para não ter
de executar tarefas aborrecidas,
como levantar cedo, tomar banho, ir à escola.
Não deu certo isso. Cada "replicante" desejava o mesmo que ele:
nenhum queria cumprir as tarefas
chatas, ou seja, ser escravo de Calvin. Mas esse fracasso, nos quadrinhos, não perturbou o imaginário, tão humano, de ter um duplo. Devemos perguntar o que
move esse desejo.
Nascer sempre exigiu um pai e
uma mãe. Simplificando, cada
um de nós é, geneticamente, metade seu pai, metade sua mãe. Enquanto estivemos presos à reprodução natural, não havia como
fugir disso, como ter uma cópia
perfeita, completa. A condição
humana esteve sujeita a essas limitações e a outras. Mas, na segunda metade do século 20, as
fronteiras do humano foram sendo superadas.
Faz só uns 20 anos que se difundiu a possibilidade de saber o sexo
do feto. Ninguém mais precisa
preparar um estoque de roupinha
azul e outro rosa. Antes de nascer
o bebê, ele já tem nome, personalidade, brinquedos. Mas o ultra-som que informa o sexo também
permite práticas odiosas, como o
aborto sistemático de fetos femininos, praticado no Oriente.
De todo modo, o controle do futuro pelo ser humano se ampliou
muito. O Projeto Genoma talvez
seja o que mais mobiliza esses desejos de controle. Poderemos, espera-se, acabar com alguns defeitos congênitos antes mesmo do
nascimento. Faz parte da condição humana superar os limites
que a natureza colocou para nós.
Mas a clonagem de um ser humano vai mais longe: pretende
gerar alguém que não nasça de
dois genitores, e sim de um só.
Ora, muito antes de Calvin, a idéia
mais forte por trás da clonagem já
aparecia na trilogia "A Oréstia",
de Ésquilo, 2.500 anos atrás.
Orestes matou a mãe, para vingar o pai, assassinado por ela. As
Fúrias, uma espécie de semideusas, querem puni-lo. A deusa da
sabedoria, Atena, propõe que ele
seja julgado. O deus Apolo o defende no júri: ele pergunta por
que as Fúrias perseguem o matador da mãe, mas nada fizeram
contra ela, assassina do esposo.
Elas respondem que só punem
crimes contra o sangue; um casal
não está nesse caso. Mas os jurados absolvem Orestes.
São dois os argumentos contra
as Fúrias. O primeiro é que o contrato, unindo o casal, é tão importante (ou mais) que os elos de sangue. Se tolerarmos crimes contra
os contratos, não teremos sociedade, apenas clãs em guerra uns
contra os outros. Este argumento,
nós aceitamos sem dificuldade.
Já o segundo soa muito estranho, hoje. A mulher, diz Apolo,
não passa de um vaso, que recolhe
o sêmen do homem. Tudo o que
alguém será está na semente de
seu pai. O papel da mãe é passivo.
Daí que ela seja subordinada ao
homem. Ora, por uns bons 2.000
anos essa tese será sustentada,
com certo êxito, mas só será refutada com a moderna genética.
Será a clonagem um modo de
voltarmos aos tempos de Ésquilo
ou à idéia de que um ser nasça de
apenas um genitor? É claro que
nada impede clonar uma menina
com base na mãe. Enquanto Ésquilo, num paradigma machista,
entendia que todos nós, homens
ou mulheres, viríamos só do pai,
hoje teríamos meninas copiando
a mãe, meninos replicando o pai.
Quer dizer, não se trata de voltar
ao machismo. Mas trata-se, talvez, de voltar aos tempos pré-contratuais.
O contrato não é só um procedimento capitalista. Simboliza a essência de uma sociedade democrática, na qual as pessoas ocupam seus lugares não pelo que são
(por seu status), mas pelo que fazem, combinam e pactuam. Como forma de ordenação do mundo, ele é recente. Foi teorizado há
apenas 400 anos. É praticado há
somente 200. Não chegou a dominar o mundo. Um filme como o
chinês "Nenhum a menos"
(1999), todo construído sobre a
impossibilidade dos diálogos e
dos contratos, mostra como é difícil construir a sociedade sobre a
relação negociada com o outro.
Estará terminando, tão precocemente, a era dos contratos? Dispensar a associação de um homem com uma mulher para ter
um filho pode ser sinal disso. O
narcisismo atual faria gerar filhos
de um só. Mas concluamos com
duas notas. Primeira, esse é um
desejo, não necessariamente algo
viável. Calvin já o percebeu: nada
garante que nossa cópia seja nosso escravo. Se o filho-cópia nos
dispensa da negociação com a
parceira (ou o parceiro) para gerá-lo, ele também é um outro em
relação a nós, e teremos de negociar com ele, para criá-lo. Mesmo
o que geneticamente é cópia será,
socialmente, um outro. O sonho
narcisista pode dar, bem, errado.
Segunda: ainda que a clonagem
seja uma técnica tão nova, o desejo de não dever nada a ninguém,
até na geração de um ser humano,
não é novo. Citei Ésquilo, não por
tola erudição, mas porque nossos
desejos talvez sejam bem arcaicos, atávicos. As técnicas têm poder quando ativam os nossos desejos: são eles que devemos conhecer, é com eles que devemos
negociar.
Renato Janine Ribeiro, 53, é professor
titular de ética e filosofia política na USP
e autor de "Sociedade Contra o Social"
(Companhia das Letras, 2000)
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