São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2008

Próximo Texto | Índice

NO CORAÇÃO DA ANTÁRTIDA

Tempo melhora e permite pouso no gelo

Brasileiros conseguem recolher amostra obtida em escavação de 95 metros, e Folha chega às instalações da expedição

Aterrissagem é feita em pista azulada escorregadia; motos de neve transportam grupo a acampamento após uma sessão de orientação

Toni Pires/Folha Imagem
A pista de pouso, com marcas de pneu deixadas pelo Ilyushin; ao fundo, as barracas coloridas da agência de turismo de aventura ANI, e as montanhas Patriot

MARCELO LEITE
ENVIADO ESPECIAL À ANTÁRTIDA

O vôo de Punta Arenas, no extremo sul do Chile, para os montes Patriot, no lado ocidental da Antártida, foi tranqüilo. Voando a oeste da península Antártica, o braço do continente gelado que se projeta em direção à América do Sul, o desconfortável avião-cargueiro Ilyushin-76TD pousou às 23h54, horário chileno (0h54 da madrugada de sábado no Brasil).
Ao todo, foram quatro horas e meia no ar. Mesmo sendo meia-noite, era dia claro, pois no verão antártico -Patriot fica a 80 de latitude Sul, a cerca de 1.100 km do pólo- o sol não chega a se pôr.
Começa assim, após dez dias de atraso em Punta Arenas, a cobertura da Folha para a Expedição Deserto de Cristal na Antártida. A pioneira missão científica independente do Brasil no interior do continente branco conta com oito pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). O projeto tem financiamento do Programa Antártico Brasileiro (Proantar).
Os pesquisadores desembarcaram em Patriot no último dia 1º e ficarão até 4 de janeiro no acampamento-base a menos de 1 km da empresa Logística e Expedições Antárticas (ALE), ou em missões remotas. Aguardavam a chegada dos enviados especiais da Folha os pesquisadores Ulisses Franz Bremer, da UFRGS, e Marcio Cataldo, da Uerj. Seguimos para o acampamento do grupo transportados por duas motos de neve.

Natal branco
Quatro dos membros da equipe se encontravam até a véspera do Natal a cerca de 80 km de monte Johns, a menos de uma hora de vôo do acampamento-base brasileiro. Eles tinham ido para lá no dia 8, em avião pequeno (bimotores Twin Otter, com esquis), para escavar uma coluna de gelo de até 150 metros.
Pararam em 95 metros, por problemas com equipamento. Essa profundidade corresponde a gelo formado nos últimos 250 anos, aproximadamente. A análise desse testemunho permitirá, assim, obter informações sobre a composição da atmosfera e do clima no último quarto de milênio.
Agora a equipe está de novo reunida. Voltaremos todos juntos no dia 4. Isso, claro, se o clima antártico não pregar novas peças, impedindo pouso e decolagem do Ilyushin da empresa russa Air Almaty, que presta serviços à ALE.
Se o vôo foi tranqüilo, o mesmo não se pode dizer do pouso. A tensão reinava dentro do Ilyushin, que levava 47 passageiros mais uma dúzia da equipe da ALE, inclusive dois médicos.
Para o avião aterrissar, havia 3.000 m de pista de gelo azul -neve compactada durante séculos e milênios exposta pelo vento incessante. O imenso jato de quatro turbinas, que leva 17 toneladas de carga útil, parecia que nunca iria parar. "Pista" é maneira de dizer. O gelo é mais ou menos aplainado, com limites da faixa de pouso definidos por quatro funcionários da ALE, dois em cada ponta.
À esquerda, os montes Patriot, que fazem parte da cadeia Independence. À direita, as barracas coloridas da agência de turismo radical Rede Internacional de Aventuras (ANI) se destacam no branco ofuscante.
Descer do avião é entrar de sola no perigo -literalmente. O gelo azul é ultra-escorregadio. Os funcionários da ALE orientam os passageiros -a maioria alpinistas que pretendem escalar o maciço Vinson, montanha mais alta da Antártida com seus 4.892 metros- a se dirigir para a frente do Ilyushin e caminhar na direção do acampamento, a menos de 1 km.

Coleta de resíduos
A recepção ocorre na tenda principal, um ambiente amplo de teto semicircular, com espaço para abrigar várias dezenas de pessoas. Uma refeição de boas-vindas é oferecida, com goulash, purê de batatas e pão. Os hóspedes da ANI pernoitarão em barracas menores. Os de expedições independentes ainda teriam de armar suas próprias barracas.
Segue-se uma rápida sessão de orientação para os recém-chegados. Há preleções sobre tudo, de como usar o banheiro (urina e fezes separadas) a regras como não partir para escaladas em grupos com menos de três montanhistas. Quem vai subir o Vinson, por exemplo, tem de trazer de volta todos os seus resíduos. Todos.

Congelamento
Parte das informações já havia sido apresentada na sessão de esclarecimento do dia 15, no Clube Croata de Punta Arenas. A parte mais pesada diz respeito a congelamento ("frostbite"). Duas ou três fotos bastaram para despertar interjeições de repulsa, sobretudo a imagem do guia que ocultou do grupo estar sofrendo congelamento nas coxas, mais raro que no rosto e nas mãos. Estava dado o recado.
Há muitos detalhes para atentar. Na verificação do equipamento polar que cada viajante tem de enfrentar, ainda no hotel, a lista de itens enche duas páginas. O enviado da ALE examina cada item, da qualidade das botas à quantidade de luvas, e faz várias recomendações. Conselhos úteis, como comprar duas garrafas de boca larga, menos propícias a congelamento no gargalo -uma para água, outra para urinar sem sair da barraca.
As barracas dos hóspedes da ANI, projetadas para duas pessoas, parecem ser confortáveis. Dá para ficar em pé e até movimentar-se dentro. Têm formato semicircular alongado, com meia dúzia de hastes curvas a sustentá-las.


Próximo Texto: +Marcelo Gleiser: Celebrando a ciência
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.