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+Marcelo Leite
Toalha jogada
Periódicos desconfiam de trabalho de ponta vindo de um país tropical
Ao vencedor, as batatas.
Stevens Kastrup Rehen decerto conhecia a máxima machadiana quando retornou ao Brasil,
em 2005, para retomar um posto na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Isso depois de começar
com o pé direito uma carreira nos Estados Unidos de pesquisador independente, em centros de excelência
como o Instituto Scripps.
Rehen poderia acrescentar agora,
com conhecimento de causa: ao perdedor, as toalhas.
Seria, no entanto, render-se a uma
visão estreita do que significa perder e
ganhar, em ciência. Jogar a toalha na
competição internacional, em seu caso, significa apenas um lance no clássico que é a pesquisa com células-tronco no Brasil. Um clássico em que
ele entrou para decidir.
Rehen faz tabela com Lygia da Veiga
Pereira, que pesquisa na USP. Eles
atuam na primeira divisão das células-tronco embrionárias humanas (abreviadas CTEHs), promessa ainda experimental de uma medicina regenerativa, e das primas adultas apelidadas de
células pluripotentes induzidas (CPIs
seria a sigla canhestra em português;
melhor iPSC, do inglês).
Pereira marcou um tento importante com a primeira linhagem de CTEHs
criada no Brasil, batizada BR-1 e
anunciada em outubro passado. Em
janeiro quem marcou foi Rehen, com
o cultivo pioneiro de iPSCs no país.
Ambos os tipos de célula precursora
guardam a capacidade de originar as
células especializadas de dezenas de
tecidos e órgãos do corpo. Portanto,
têm igualmente o potencial teórico de
reconstituí-los -curá-los- quando
defeituosos ou doentes. Na meta estão
diabetes, Parkinson e traumas de medula espinhal, entre outros males.
Tanto a pesquisa básica, estágio
atual, quanto a futura medicina regenerativa exigirão milhões e milhões
dessas células, o que não é possível
com os métodos artesanais dos laboratórios. Rehen e Pereira se juntaram
a Leda Castilho, também da UFRJ,
para iniciar uma produção mais industrial e confiável.
Há um ano, Rehen e Castilho multiplicaram células-tronco embrionárias, ainda importadas, em biorreatores. Sua versão da técnica utiliza frascos rotatórios, para proporcionar às
células um banho mais eficaz de nutrientes, e microesferas sobre as quais
elas podem agarrar-se e dividir-se.
A façanha foi relatada pela imprensa brasileira. Para a opinião pública
leiga basta o critério dos editores,
mas, para a comunidade de pesquisa
globalizada é preciso o aval de periódicos científicos, os famigerados "journals". Eles exigem que todo artigo
passe pelo crivo da "peer review" (revisão por pares), crítica especializada
e, em geral, anônima (o parecerista
não sabe quem é o autor).
Começou a corrida pela publicação.
Rehen conta que enfrentou resistência dos revisores, possivelmente desconfiados de um trabalho de ponta
proveniente de um laboratório periférico num país tropical. Um grupo de
Wisconsin (EUA), a Roma das células-tronco, saiu na frente.
Ao trombar com o quarto "journal",
Rehen jogou a toalha. Partiu para um
periódico brasileiro, "Brazilian Journal of Medical and Biological Research". Apesar de editado em inglês,
sua penetração internacional é menor. O artigo foi aceito nesta semana.
A toalha foi jogada, mas os dados
científicos também. Ninguém tira de
Rehen, Pereira e Castilho o mérito de
garantir que, se a medicina regenerativa com células-tronco um dia entrar
em campo, o Brasil poderá partir para
o ataque com seus próprios talentos e
células.
MARCELO LEITE é autor da coletânea de colunas "Ciência
- Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e do livro
de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática,
2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em
Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br
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