São Paulo, domingo, 29 de junho de 2008

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+ Marcelo Leite

Complicações e libertações

Gawande expõe sem meias palavras a imperfeição da medicina

A literatura médica é uma das formas misteriosas de literatura, aquela em que o caso particular de dor e sofrimento ("pathos") pode alcançar uma espécie de universalidade concreta. Qualquer um pode se comunicar com ele -basta saber ler e estar vivo. Deve ter algo a ver com a nossa capacidade inata de sentir empatia com aquele que padece, mesmo que seja um animal.
De Sigmund Freud a Oliver Sacks, há grandes escritores ocupados em narrar os desvios, os atalhos e as variantes em que se mete aquilo que é humano. Na sua companhia, rompemos entretidos a fronteira entre o animal e o espiritual e nos descobrimos menos perfeitos. Drauzio Varella chega muito perto dessa grandeza, com seu antológico "Por Um Fio".
Com tanta coisa para dar errado num organismo, milagre é que tantos vivam com saúde. Já elogiei aqui, também, o fantástico livro "Mutantes", de Armand Marie Leroi. Salvo engano, esse apoio enfático não foi ainda capaz de tocar o coração e a mente de algum editor brasileiro.
Se o leitor tem queda pelo mundo das esquisitices médicas, segue aqui outra recomendação -de leitura, porque editado no Brasil o livro já foi.
Aliás, há muito tempo: seis anos. A lerdeza do colunista não justifica, porém, que um autor tão bom seja omitido: Atul Gawande, que nos fez o favor de escrever "Complicações - Dilemas de um Cirurgião diante de um Ciência Imperfeita" (Objetiva).
Mais do que revelar bastidores da medicina, coisa que faz com a competência narrativa de qualquer colaborador da revista "New Yorker", o americano Gawande nos transporta para dentro da cabeça de um médico em formação. Melhor ainda: para o âmago do que seria o torturado "órgão moral" do aprendiz de medicina.
O narrador, como tantos dos médicos com que temos de (nos) tratar, lida a cada momento com desafios excruciantes. Tem de decidir o que fazer, mesmo na ausência de todas as informações confiáveis que gostaria de obter. Não são muitos aqueles capazes de confiar na própria intuição quando é a saúde, a dor ou até a vida de outrem que está na linha.
Um dos exemplos dolorosamente apaixonantes é o do residente que precisa aprender a estabelecer uma linha de acesso central perfurando a veia cava por baixo e atrás da clavícula do paciente. Mesmo que erre duas, três, quatro vezes, não tem escolha a não ser continuar furando. Só vai aprender se continuar.
Gawande discute sem meias palavras esse dilema da medicina. Como pacientes, queremos excelência. Mas excelência só se alcança com treino, e só se pode treinar de verdade com seres humanos. Em geral, pacientes mais pobres, a usual clientela de hospitais-escola. Não é preciso ir à África para topar com cobaias humanas.
O próprio Gawande conta que, quando seu filho precisou ser operado, não aceitou que a cirurgia fosse feita por um residente em treinamento como ele. Por sinal, o mesmo colega que havia acertado em cheio o diagnóstico. Preferiu um titular.
Tenho eu mesmo uma filha que está no quinto ano de medicina. As histórias que conta do grande hospital-escola em que atua como interna são de arrepiar os cabelos. Não sei se aceitaria para mim -ou para ela- algumas situações vividas por seus pacientes.
Agradeço a esses pacientes, e a médicos como Ana e Gawande, por carregarem com tanta honestidade o seu fardo. Não deve ser fácil experimentar na própria carne que não há outro caminho para sua ciência se tornar um pouco menos imperfeita.


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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