São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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VIDA CURTA

Divulgação/APS
Imagem de microscópio eletrônico mostra nanobactérias de, em média, 100 nanômetros de diâmetro. As partículas são apontadas por pesquisa americana como possíveis novas formas de vida

PESQUISA FEITA NOS EUA TRAZ NOVOS INDÍCIOS E ATIÇA POLÊMICA SOBRE AS "NANOBACTÉRIAS", UMA POSSÍVEL NOVA FORMA DE VIDA MENOR QUE QUALQUER OUTRO SER DA TERRA, E SOBRE LIMITES DE TAMANHO PARA OS SERES VIVOS

Marcus Vinicius Marinho
Free-lance para a Folha

A busca do homem por novas e diferentes formas de vida na Terra é provavelmente uma etapa determinante para a realização de seu sonho de encontrá-las em outros mundos. Ao que parece, uma das pistas para isso pode ser tão pequena a ponto de estar bem perto e ainda não termos percebido -na verdade, dentro de nós.
É verdade que a vida, entidade ainda indefinida pela qual os seres se distinguem do barro mineral, teve sua descrição modificada muitas vezes na história da ciência, e não menos no século 20. A vontade de antecipar essas mudanças, tão aguardadas e, ao mesmo tempo, tão difíceis de aceitar no pensamento científico, cria às vezes teorias dignas de ficção científica. Mas a questão é: o homem pode estabelecer limites -de tamanho, ou quaisquer outros- para o que chamamos de vida?
É exatamente essa a discussão explosiva que envolve as chamadas nanobactérias, estranhas estruturas, esféricas e minúsculas, que estão presentes no organismo humano em pedras de rim e artérias calcificadas. Alguns na comunidade científica dizem que elas são uma nova forma de vida e que podem ser culpadas por uma grande gama de doenças dos homens. Já outros argumentam que elas são simplesmente pequenas demais para poderem estar vivas.
As esferas, que são sempre encontradas em meio a estruturas minerais (sob uma capa de fosfato de cálcio), realmente intrigam à primeira vista: elas parecem ter a capacidade de se reproduzir sozinhas e, vistas ao microscópio eletrônico, revelam uma camada protetora que muito se assemelha a uma parede celular. No entanto, são menores do que todas formas de vida conhecidas: seu diâmetro mede de 30 a 150 nanômetros (cerca de um milésimo da largura de um fio de cabelo), menos que até mesmo muitos vírus, entidades que não conseguem se reproduzir sozinhas -apenas com a "ajuda" de um ser vivo. A bactéria Mycoplasma genitalium, considerado o menor ser na Terra, tem 300 nm.
A suposta vida das nanobactérias não é um assunto exatamente novo: a questão apareceu no meio da década de 90, quando geólogos australianos propuseram que as estruturas que encontravam em pequenos pedaços de rocha fossem seres vivos. A polêmica se acirrou mais ainda em 1998, quando os pesquisadores Olavi Kajander e Neva Cifcioglu, da Universidade de Kuopio, na Finlândia, descobriram as estruturas em pedras de rim e viram que elas se reproduziam. Mais: eles afirmaram que haviam conseguido isolar DNA das estruturas. A pesquisa dos finlandeses soou para muitos como um absurdo, já que estudos anteriores já haviam determinado que um ser vivo deveria ter, no mínimo,140 nm de diâmetro para conseguir alocar o mínimo de DNA e proteínas para funcionar. O artigo de Kajander e Cifcioglu foi rechaçado em diversas partes do mundo, ainda mais quando o médico John Cisar, dos NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos EUA), publicou um artigo em 2000 sobre nanopartículas na saliva, em que dizia que o DNA detectado pelos finlandeses era apenas um contaminante vindo de uma bactéria normal. "Por mais que tentássemos, não conseguíamos tirar dessas nanopartículas nenhum ácido nucléico. Foi quando percebemos que era uma enganação", diz Cisar à Folha. No entanto, um novo estudo, feito por um outro grupo, parece ter colocado as nanobactérias de volta ao jogo.

Revoluções e fusões a frio
A pesquisa, desenvolvida na Clínica Mayo em Rochester, EUA, só foi publicada neste mês no "American Journal of Physiology: Heart and Circulatory Physiology" (ajpheart.physiology.org) após passar por nada menos que sete ciclos de revisão, dada a controvérsia sobre o assunto. Afinal, o estudo desenvolvido por John Lieske, Virginia Miller e colegas trazia novamente à superfície as nanobactérias. Ao investigarem artérias e válvulas cardíacas calcificadas, os cientistas isolaram as mesmas partículas nanoscópicas e também viram que elas se replicavam quando tratadas em cultura adequada. Mas os pesquisadores foram além e, ao utilizarem nas nanobactérias um corante para identificar DNA, viram que ele mudava de cor. Além disso, elas absorviam uridina -um açúcar utilizado por células na produção de RNA-, o que sugere que as nanobactérias provavelmente sabem produzir essa espécie de ácido nucléico. "Temos prova de que as nanobactérias contêm DNA, mas nós ainda não fomos capazes de identificar uma seqüência de genes única ao organismo. Sabemos que o DNA está presente. E quem é que pode dizer que as nanobactérias são pequenas demais para viver?", diz Virginia Miller à Folha. "Pesquisadores no campo da geomicrobiologia já descobriram organismos em ambientes tão inóspitos que se achava que era impossível que ali houvesse vida. A minha opinião, como cientista, é a de que temos que manter a mente aberta e não impor limites sobre o que é e o que não é possível. Pode ser que estejamos perto de uma revolução", afirma. Embora se saiba que as nanobactérias de alguma maneira facilitam a concentração de cálcio (uma das hipóteses é que as capas de sais minerais que as envolvem são um mecanismo de proteção), seu tamanho limita muito a investigação científica. Ainda faltam muitas pistas sobre elas, mesmo se se parte do pressuposto de que elas sejam vivas. Se são vivas, como se locomovem, comem, se reproduzem? Como é seu metabolismo? De que são feitas suas "paredes celulares"? "O que se vê nas fotos é mais ou menos o que nós sabemos quanto a isso. Você pode atestar de alguma maneira que o que você viu no microscópio são realmente paredes celulares? Por ora, nós as chamamos de "camadas fronteiriças que se assemelham a paredes celulares". Não analisamos ainda a composição para saber se são similares às de células de mamíferos", diz Miller. De qualquer maneira, a pesquisa da equipe da clínica Mayo levantou mais credibilidade que o estudo de Kajander e Cifcioglu, já que, ao contrário dos finlandeses, que criaram uma companhia para lucrar com a possível descoberta -a Nanobac, que vende produtos para identificar e destruir nanobactérias-, os americanos não solicitaram patentes, nem foram financiados por empresas. "Somos um laboratório independente, não queremos tirar lucro disso e sim entender o que acontece", afirma a pesquisadora. O responsável pela pesquisa que determinou o tamanho de 140 nm como o mínimo para as coisas vivas, o microbiólogo Jack Maniloff, da Universidade de Rochester -não a mesma cidade americana da clínica Mayo, no Estado de Minnesota, mas sim no de Nova York-, diz não dar crédito ao novo estudo. "Isso tudo é bobagem, eu não acredito nisso. Pelo menos não enquanto não vir que se conseguiu extrair DNA dessas partículas", diz Maniloff. "Já se tentou de tudo para isso, não entendo porque eles teriam conseguido agora. As nanobactérias são a fusão a frio da microbiologia", afirma, referindo-se à experiência lendária de Stanley Pons e Martin Fleischmann. Os dois anunciaram em 1989 uma suposta técnica revolucionária de fundir átomos de hidrogênio à temperatura ambiente para produzir hélio e energia. Embora tenham causado um entusiasmo de início, no fim Pons e Fleischmann foram à ruína científica, envolvidos em acusações de fraude e incompetência. E isso, segundo Maniloff, também pode acontecer com a equipe de Miller. Cisar, dos NIH, concorda: "As nanobactérias causam tamanha comoção nas pessoas que sempre tem alguém tentando ressuscitar esse assunto", diz. Para ele, as partículas nada mais são que minerais que sofrem algum processo anormal de crescimento de cristal. Segundo o médico, não há no estudo de Miller nenhuma evidência convincente de nanobactérias ou de DNA. "Utilizar as técnicas de marcação de DNA com coisas que você não sabe muito bem o que são pode dar falsos positivos", diz Cisar. A pesquisadora rebate: "Falsos positivos são sempre uma preocupação para um bom cientista, mas nós controlamos nossos experimentos. E as evidências que temos de que as nanopartículas absorvem uridina e até produzem uma proteína? Nós já até isolamos o DNA em um trabalho que ainda não publicamos. Se por um lado cada evidência por si só não parece convincente, por outro, quando você considera o quadro geral, vê que temos algo interessante."

Cálcio e artérias
Seres vivos ou simples minerais, o fato é que pelo menos é certo que essas nanopartículas têm algum tipo de relação com certos problemas de saúde humanos, como pedras nos rins ou em alguns casos de doença coronária, a primeira causa de morte natural nos países ocidentais.
O grupo de Miller encontrou, assim como os finlandeses já haviam feito com as pedras de rim, nanobactérias em artérias e válvulas cardíacas que haviam passado por processo de calcificação, deposição de cálcio que aumenta a probabilidade de infarto. "Não sabemos ainda se são elas que causam a calcificação ou se o processo é causado pelo corpo tentando se defender da presença de um organismo intruso", afirma a pesquisadora.
O médico Stephen Epstein, diretor do Instituto de Pesquisa Cardiovascular do Centro Hospitalar de Washington, na capital americana, e ligado à Nanobac, também já verificou a relação em um estudo que relacionava os níveis sangüíneos de nanobactérias à probabilidade de calcificação de artérias. Para tanto, utilizou um kit da própria Nanobac que, segundo a empresa, faz a identificação de anticorpos humanos para nanobactérias.
Os anticorpos, também vendidos pela empresa, já foram usados pela equipe de Miller em tecidos humanos, que verificou que eles se prendem aos tecidos calcificados, mas não a tecidos sadios, e continuam ligados ao tecido doente mesmo quando o cálcio é removido. "O anticorpo está se ligando ao mesmo lugar que o corante de DNA", diz Miller, que agora procura uma seqüência genética única às nanobactérias. Se é possível? A pesquisadora, que quando indagada não quis revelar a idade, disse: "Bem, sou velha o suficiente para saber que eu não sei tudo e que nunca devo dizer "nunca"."


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