São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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Ciência em Dia

Tempo quente na Islândia

Marcelo Leite
editor de Ciência

Entrou em uma nova crise o mais célebre projeto de banco de dados genéticos do mundo, que a empresa deCODE estava tentando pôr de pé na Islândia. A idéia era contar com um manancial de informações para investigar a origem genética de doenças, mas no meio do caminho estava o pedregulho da privacidade.
O novo tropeção foi ocasionado pela Suprema Corte do país, uma ilha de 103 mil km2 e 288 mil habitantes no Atlântico Norte, mais ou menos a meio caminho entre a Noruega e a Groenlândia, mais conhecida talvez como a pátria da cantora Björk. A decisão contra o banco de dados na realidade foi promulgada em novembro passado, mas divulgada apenas em islandês... Quando se tornou conhecida em inglês, neste mês, ganhou as páginas noticiosas do periódico científico britânico "Nature" (www.nature.com).
O tribunal constitucional decidiu a favor de Ragnhildur Gudmundsdottir, uma estudante de 18 anos que representou contra o banco de dados ainda em formação para impedir que ele incluísse informações médicas de seu pai (provavelmente chamado Gudmund, se entendo bem a estrutura dos segundos nomes islandeses). Embora ele tenha sido um dos mais de 260 mil islandeses que não se pronunciaram contra os planos da deCODE anos atrás, sua filha (Gudmundsdottir) queria impedir que o prontuário do falecido figurasse nos computadores em associação com sua genealogia e seus dados genéticos, obtidos a partir de amostras de sangue.
O argumento da moça era que, no caso de esse cruzamento de dados levar à conclusão de que seu pai era portador de alguma doença, ou predisposição para doença, ela também poderia ser identificada como uma pessoa de risco e, assim, sofrer discriminação -profissional, por exemplo. A corte lhe deu razão. Mais ainda, juristas islandeses interpretaram a decisão como um indicativo de que o tribunal considera inconstitucional a lei de 1998 que regulamentou o procedimento para a criação do banco da deCODE.
Na realidade, os planos da empresa já estavam no congelador há coisa de dois anos. De início, houve entusiasmo -inclusive de investidores- com a possibilidade de acelerar a identificação de genes de risco escarafunchando as informações de uma população relativamente homogênea, com bons registros genealógicos e disposta em sua maioria a ceder amostras de sangue para análise de DNA. Em 2002, ele começou a esfriar.
O primeiro tropeço da deCODE foi na soleira da Autoridade de Proteção de Dados da Islândia. O órgão negou à empresa o acesso amplo aos dados individuais, mesmo sem identificação da pessoa, que seriam necessários para montar os "pedigrees" e buscar associações entre perfis clínicos e genéticos. Segundo Sigrun Johannesdottir, que preside a autoridade, regras da União Européia permitem unicamente acesso a dados generalizados.
O segundo tropeço foi na porta dos hospitais. Kari Stefansson, o geneticista-empresário que idealizou o banco garimpável da deCODE, não conseguiu concluir um acordo sobre a forma de pagamento, pelo sistema de saúde, para obter dados de interesse clínico.
Segundo disse um porta-voz da empresa à revista "Nature", a deCODE já coletou o sangue de 110 mil adultos em 50 estudos sobre doenças genéticas, mas por ora só pode usá-las em conexão com as moléstias especificadas nos estudos.
Parece que entrou numa fria.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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