São Paulo, sexta-feira, 30 de julho de 2004

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Físico concebeu bases da biologia molecular

ROBERT OLBY
ESPECIAL PARA A FOLHA

Com a morte de Francis Crick, em 28 de julho de 2004, perdemos um gigante intelectual do mundo da ciência do século 20. Ainda na casa dos 30 anos, quando ingressou no campo da biologia como estudante pesquisador, Crick passou a dominar o campo emergente da biologia molecular. Com sua mente brilhante e imaginativa, curiosidade intensa, julgamento arguto e memória notável, tornou-se o principal arquiteto da estrutura teórica dessa disciplina.
Embora tenha se formado em física, sua mente inquiridora migrou para outras disciplinas e acabou se fixando na biologia. Nessa área, Crick avaliou que era preciso trabalhar ao nível molecular para que se fizesse progresso significativo. Essa busca ele levou adiante por mais de um quarto de século no Laboratório de Biologia Molecular do Conselho de Pesquisas Médicas, em Cambridge.
Quando estava perto da idade de se aposentar no Reino Unido, transferiu-se para o Instituto Salk, em La Jolla, Califórnia, onde passou a se dedicar ao estudo do cérebro e da base neural da consciência. Esse trabalho fez de Crick uma figura de alta visibilidade no campo da ciência neurológica.
Francis Harry Compton Crick nasceu em Northampton, Reino Unido, em 6 de junho de 1916. Estudou física no University College, em Londres. Sua pesquisa de doutorado foi interrompida pelo início da guerra, e Crick foi trabalhar para a Marinha.
Quando decidiu voltar à pesquisa, optou pela biofísica, destacando duas questões: a diferença entre os vivos e os não vivos e a natureza da consciência. Os longos anos que passou na pesquisa permitiram estudar ambos os temas.
Crick se mudou para Cambridge e trabalhou primeiro num projeto de citologia, antes de entrar para a Unidade do Conselho de Pesquisas Médicas, de Max Perutz, no Laboratório Cavendish. Ali ele aprendeu sozinho a trabalhar com cristalografia dos raios X e contribuiu para os estudos de proteínas feitos pela unidade.
Convencido de que a notável individualidade dos diversos tipos de proteína possui um plano de construção subjacente simples, Crick acreditava que sua intricada forma tridimensional deveria ser baseada na seqüência das unidades ao longo das cadeias que as constituem. Essa visão formou a base de seu trabalho sobre a natureza da síntese das proteínas e do papel do DNA (ácido desoxirribonucléico) na determinação da constituição das proteínas.
Quando o biólogo americano de pós-doutorado James Watson foi à unidade de Perutz, em 1951, formou uma parceria com Crick e, juntos, eles propuseram uma estrutura para o DNA. Baseada no trabalho experimental de Rosalind Franklin e Maurice Wilkins, de Londres, sua estrutura sugeria modos pelos quais seria possível "ver", ao nível molecular, processos tão fundamentais quanto a duplicação dos cromossomos, a mutação de genes e a armazenagem da informação hereditária.
Publicada em 1953, foi apenas em 1958 que a estrutura Watson/ Crick do DNA começou a ganhar ampla aceitação, na medida em que as previsões baseadas nelas foram sendo comprovadas. Naquele ano foi publicado o manifesto de Crick sobre a síntese das proteínas. Nele Crick apresentou seu conceito sobre a estrutura teórica da biologia molecular.
Sua teoria girava em torno de duas hipóteses centrais: a "hipótese da sequência" e o "dogma central". A primeira expressava a dependência da seqüência de subunidades que compõem as proteínas, os aminoácidos, da sequência de subunidades no DNA, as bases. O dogma central afirmava que a transferência de "informações", isto é, a sequência, passa dos ácidos nucléicos às proteínas, mas não no sentido inverso.
Essas hipóteses formaram a estrutura geral dentro da qual puderam ser determinadas as grandes linhas do mecanismo da síntese das proteínas e o código genético pôde ser descoberto.
O estilo de trabalho de Crick sempre foi colaborativo. Ele participou de diversos seminários, manteve uma correspondência internacional grande, aconselhando e fazendo críticas ao trabalho de outros, e atuou como "intermediário honesto", reunindo pesquisadores que se beneficiariam dessa interação.
Crick alcançou a fama internacional no final dos anos 1950 e, em 1962, recebeu o Prêmio Nobel. Ele procurava se manter longe da atenção pública, para preservar o máximo possível de seu tempo para a pesquisa. No entanto, seu compromisso com o humanismo científico o levou a proferir palestras ocasionais perante a Sociedade Humanista. Tendo perdido a fé cristã enquanto ainda era menino, ele queria usar a ciência para decifrar os mistérios que oferecem um refúgio aos fiéis.
Descobrir como a vida pode ter se originado e como a consciência é produzida faziam parte dessa agenda. Se a origem da vida está em uma evolução molecular, por que evocar um ato sobrenatural? Se a consciência não é mais do que uma história complexa sobre neurônios que disparam, onde está a alma? Foi esse o tema de seu último livro, "The Astonishing Hypothesis", e foi nisso que ele trabalhou até o fim de sua vida.
Crick recebeu homenagens e honras diversas e dividiu o Prêmio Nobel com Maurice Wilkins e James Watson. Foi eleito membro da Royal Society em 1959, e em 1995 recebeu a Ordem do Mérito da rainha Elizabeth. Crick casou-se em 1940 com Doreen Dodd, com quem teve um filho, Michael. Divorciado em 1949, casou-se em seguida com Odile Speed, e teve duas filhas, Gabrielle e Jacqueline.


Robert Olby é professor emérito da Universidade de Pittsburgh (EUA) e autor de "The Path to the Double Helix", um clássico sobre a descoberta da estrutura da molécula de DNA

Tradução de Clara Allain


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