São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2008

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Doador universal


Tratamento experimental da diabetes com células de porco aproxima perspectiva de implantar órgão animal em humanos

ANDY COGHLAN
DA "NEW SCIENTIST"

No futuro não muito distante, uma pessoa que precise de um transplante de coração poderá receber como oferta o órgão de um porco. É a esperança de um grupo que se reuniu na China na semana passada para acordar diretrizes globais para os primeiros testes clínicos dos chamados xenotransplantes.
O encontro de médicos e cientistas, organizado pela Organização Mundial de Saúde em Changsha, resultou no chamado Comunicado de Changsha -um documento que deverá pautar a regulamentação global dos xenotransplantes.
O texto apresenta princípios para nortear pesquisas, traça recomendações de como a OMS e os governos devem monitorá-las e inclui diretrizes para testes. Em vista da grave escassez de órgãos humanos, o documento reflete o avanço de uma década de pesquisas. Há dez anos, muitos problemas associados aos xenotransplantes pareciam insuperáveis.
Uma grande preocupação, por exemplo, dizia respeito aos retrovírus endógenos suínos, organismos latentes presentes no DNA dos porcos. Os pesquisadores temiam que eles pudessem se despertar em órgãos transplantados para humanos.
Hoje, já há porcos com DNA alterado para evitar os retrovírus. "A maioria de nós já concorda que o risco é bastante administrável", diz Megan Sykes, do Hospital Geral de Massachusetts, de Boston (EUA).
O primeiro tecido suíno a chegar a humanos provavelmente não será um órgão, mas ilhotas (células pancreáticas) produtoras de insulina, para tratar diabéticos.

Macacos curados
Dois anos atrás, a equipe de Bernard Hering, da Universidade do Minnesota (EUA), relatou ter injetado ilhotas suínas nos fígados de macacos diabéticos juntamente com drogas imunossupressoras. Os animais puderam viver sem injeção de insulina durante os cem dias do experimento. Hering discute agora com a FDA (vigilância sanitária dos EUA) como realizar um teste em humanos.
David White e seus colegas do Instituto Robarts, em Ontario, no Canadá, também negociam um teste com a FDA no ano que vem. Para diminuir as chances de as ilhotas serem rejeitadas, White as mistura com células de testículos suínos que contêm uma molécula capaz de amenizar os ataques de células imunológicas humanas. White explica que essas são as mesmas células que protegem espermatozóides seriam vulneráveis de ataques indesejáveis do sistema imunológico.
Rafael Valdés-González, do Hospital Infantil do México, na capital do país, pioneiro no uso da técnica das células de testículos, já testou-as em um pequeno número de pessoas e afirma que, em conseqüência dela, um paciente se tornou independente da insulina.

Ilhotas russas
Outras razões para otimismo vêm de testes feitos com ilhotas suínas em países de regulamentação menos rígida. Na Rússia, a empresa neozelandesa LCT relatou sucesso no tratamento de cinco pacientes com ilhotas suínas. Para proteger as células de ataques imunológico, cientistas as revestiram com alginato -uma substância de algas que permite o fluxo de nutrientes e hormônios, mas impede o contato com células imunológicas. Em outubro, a LCT ganhou aval para um teste na Nova Zelândia.
Sykes espera que o sucesso com os testes iniciais com ilhotas resulte numa aceitação pública maior dos xenotransplantes. Mas, para transplantar órgãos inteiro, a técnica terá de superar problemas maiores, sobretudo porque órgãos terão de ser ligados a um suprimento de sangue, enfrentando a força plena do sistema imune.
Em 2002, pesquisadores da Revivicor, de Virgínia (EUA), descobriram uma possível solução: desativaram em seus porcos o gene da proteína alfa-gal -molécula que indica ao sistema imunológico humano a presença de células estranhas.
A empresa inseriu genes reguladores complementares em órgãos suínos, o que impediu os anticorpos de macacos cobaias de rejeitar os órgãos.
Um problema que está sendo mais difícil de solucionar é o da coagulação. "Achamos que anticorpos se ligam a vasos sangüíneos do enxerto suíno e que estes ativam fatores de coagulação", diz David Cooper, pioneiro dos xenotransplantes na Universidade de Pittsburgh (EUA) e parceiro da Revivicor.
Para enfrentar esse problema, dois grupos produziram porcos portadores de genes humanos de substâncias anticoagulantes. A Revivicor inseriu um gene que neutraliza uma das moléculas formadoras de coágulos. Na Universidade de Melbourne, na Austrália, Anthony d'Apice criou porcos que produzem a proteína humana CD39, que impede plaquetas de se agregarem para coagulação.
A esperança é que essas substâncias sejam produzidas apenas no órgão transplantado, sem atrapalhar a coagulação vital em outras partes.
Mesmo com essas intervenções, ainda serão necessárias drogas imunossupressoras poderosas que enfraqueceriam o corpo diante de outros invasores, incluindo o câncer. Para minimizar esse problema, outra idéia vem tomando forma: desenvolver o órgão já capaz de se defender. A Revivicor tenta agora reunir todas essas idéias num só animal, um porco geneticamente modificado que produza seus imunossupressores e anticoagulantes, além de outras substâncias.
Em vista do sucesso potencial desses experimentos, é essencial traçar diretrizes agora, diz Peter Doyle, ex-secretário da Autoridade Reguladora Interina dos Xenotransplantes no Reino Unido, já desativada.
"Os xenotransplantes têm potencial de tratar milhões de pessoas, mas guardam ameaças que preocupam, a não ser que sejam corretamente regulamentados em nível mundial".


Tradução de CLARA ALLAIN


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