São Paulo, sábado, 30 de dezembro de 2006

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Latitude alta torna cidade mais "boêmia"

Estudo aponta que locais mais distantes do equador têm maior proporção de pessoas que dormem e acordam mais tarde

Pesquisa foi liderada pela Unifesp e analisou 20 mil questionários sobre hábitos de sono; associação ainda tem causa incerta, diz grupo

Natacha Pisarenko - 3.abr.2006/Associated Press
Vista noturna da avenida Nove de Julho, em Buenos Aires


RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL

Nordestinos tendem a dormir e acordar mais cedo do que gaúchos, e paulistas ficam numa linha intermediária. Cientistas mostraram que a latitude de fato influencia o relógio biológico das pessoas, e as cidades mais ao sul, no caso do Brasil, tendem a abrigar uma parcela maior de população noctívaga.
"Quanto mais você se afasta do equador, mais essa diferença aumenta", diz Mário Pedrazzoli, pesquisador Instituto do Sono da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), um dos líderes do estudo, que contou com outros grupos de pesquisa espalhados pelo país. Ele ainda não sabe a razão disso, mas suspeita que possa haver uma interação da influência da latitude com a genética.
A correlação foi descoberta neste ano, após os pesquisadores fecharem as contas de 5.000 questionários respondidos por pessoas em várias cidades para avaliar a distribuição dos cronotipos (tendência natural da pessoa a dormir tarde ou cedo). Depois de constatar a tendência, os números foram reforçados por mais 15 mil questionários, e os cientistas devem publicar um estudo com os resultados em 2007.
A idéia de relacionar latitude a cronotipo não é nova. Ela já havia sido abordada pelo biólogo Luiz Menna-Barreto, da USP. Menna-Barreto já havia tentado investigar essa possibilidade num estudo com cerca de 250 pessoas, mas a amostra era pequena demais para revelar o resultado.
O cientista da USP decidiu retomar a investigação em 2005, incentivado por Pedrazzoli, que acabara de levantar evidências favoráveis à tese, baseadas em seu trabalho com genética. Desta vez, porém, já existia motivação para reunir um numero maior de pessoas, com auxílio de um questionário no site do grupo de cronobiologia da USP (www.crono.icb.usp.br).

Do Oiapoque ao Chuí
Olhando em retrospectiva, relacionar latitude e cronotipo pode fazer bastante sentido. Basta comparar, por exemplo, Buenos Aires, cidade de tradição boêmia, com Recife, onde a caminhada na praia durante a alvorada é um hábito disseminado. Mas só histórias de turistas não bastam para fazer ciência. E aí entrou a importância do método e da estatística.
Para Pedrazzoli, a descoberta sobre a influência da latitude foi de certa forma, impulsionada por uma característica única do Brasil: seu território se estende desde acima da linha do equador até 34 ao sul. Enquanto no norte do país os dias quase não variam em duração ao longo do ano, no sul a luz solar dura muito mais no verão e muito menos no inverno.
"Essa variação grande de latitude não existe nos países em que a pesquisa é mais tradicional e tem mais investimento, na Europa e nos EUA", afirma.
Mais do que mera curiosidade, porém, as descobertas recentes da cronobiologia podem ter um caminho de aplicação claro. Segundo Pedrazzoli, estudos ambientais e genéticos têm mostrado que a natureza humana talvez seja muito menos adaptável a horários diferentes do que aparenta.
"Um indivíduo vespertino não tem condições de trabalhar de manhã, e um aluno muito vespertino não deve ser colocado para estudar de manhã", diz Pedrazzoli. "Depois ele é taxado de relapso porque fica dormindo na aula, mas isso não é problema dele; é problema do organismo. Outras pessoas simplesmente não conseguem trabalhar à noite."
Quando as noites maldormidas se tornam um problema crônico, diz, uma mera sonolência pode evoluir para problemas cardíacos e imunológicos. Conhecer melhor o espectro de cronotipos de uma população, portanto, pode ajudar governos e empresas a planejarem uma rotina social mais saudável. "Se as empresas adotassem horários mais flexíveis, a produtividade aumentaria."
Ao usar informações da cronobiologia, porém, é preciso levar em conta outras variáveis, como a idade. As emissoras de TV já sabem, por exemplo, que pessoas mais velhas tendem a ficar mais matinais, e programam sua grade nos fins-de-semana de acordo com isso.
A relação entre latitude e cronotipos, num outro exemplo, pode ser uma variável importante a considerar para uma cidade decidir se adere ou não ao horário de verão.
Resta saber se os cientistas vão convencer empresas, governos e escolas de que vale à pena respeitar o cronotipo das pessoas. "Meu filho está entrando na adolescência agora, e a gente sabe que os adolescentes têm uma tendência muito grande a ser vespertinos", diz Pedrazzoli. "Eu não quero colocá-lo para estudar de manhã."


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