São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 2010

Texto Anterior | Índice

+Marcelo Leite

Mês cruel


Imagine que a chuvarada de janeiro possa não ser exceção


Janeiro já vai tarde, depois de bater recordes de precipitação em São Paulo. Deixou pelo menos 65 corpos sobre e sob a terra encharcada, além de 4.700 desabrigados e 18.600 desalojados. Se estivesse vivo e em São Paulo, T.S. Eliot mudaria de opinião sobre a crueldade de abril.
Anos atrás, no início do primeiro governo Lula, uma revista de negócios publicou foto da então ministra do Meio Ambiente com os dizeres: "Um dia o Brasil ainda vai fazer a conta de quanto custou a gestão Marina Silva ao país" (ou algo assim). Muita água caiu desde então.
Hoje, o jornalismo econômico mais sério e menos editorializado (ideológico) começa a fazer as contas de quanto custa não pensar e planejar de modo ambientalmente estratégico. São cálculos difíceis de fazer. Qual o prejuízo para a economia de uma megalópole como São Paulo depois de quase 40 dias de chuvas torrenciais?
Não perdem só os mais pobres entre os pobres -tudo: muitos parentes e poucas posses- nos tugúrios úmidos de tábuas e blocos que equilibram sobre barrancos. Madames adiam incursões ao shopping. Sacoleiras partem mais cedo da 25 de Março, com receio do temporal vespertino.
Compras pela internet chegam fora do prazo. A construção civil entra em compasso de espera. Milhões de horas de trabalho se perdem em atrasos. Motoboys se arriscam em dobro e bacanas veem seus jipões invadidos pela lama, ambos imobilizados numa solidariedade forçada debaixo da ponte.
Leio no jornal "Valor Econômico" que só a elevação do piso de três pavilhões do entreposto Ceagesp pode custar de R$ 60 milhões a R$ 100 milhões. Engana-se o paulistano se achar que isso não afeta o seu bolso. O custo-enchente é partilhado por todos, seja nos preços em alta, seja na fuga de empresas e empregos da cidade afogada. Agora imagine que a chuvarada de janeiro possa não ser exceção, mas sintoma de um distúrbio novo. Meteorologistas e climatólogos, ciosos da precariedade inerente a suas previsões, hesitam em vincular o aguaceiro à mudança do clima. Um leigo, porém, está livre para especular.
Janeiro deve terminar em São Paulo com um índice pluviométrico próximo de 450 mm, quase o dobro da média de 239 mm para o mês, segundo o Centro de Gerenciamento de Emergências da Prefeitura. E algo parecido ocorreu nos seis meses anteriores: todos estiveram pelo menos 22% acima da média. Em alguns casos, como julho, mais que três vezes maior.
Seriam três os fatores convergindo para sustentar tamanha anomalia: 1) El Niño, o aquecimento anormal da superfície do Pacífico junto à América do Sul, que faz chover mais no Sul-Sudeste do Brasil; 2) águas do Atlântico mais quentes -cerca de 2C- que o usual; 3) excesso de umidade proveniente da Amazônia.
Pesquisadores podem ter receio de pôr o guizo no rabo do gato, mas alguém precisa ao menos tentar. Todos os três fenômenos relacionados acima, se não chegam a ser a arma fumegante do aquecimento global causado pelo homem, mostram-se pelo menos compatíveis com as previsões gerais sobre mudança do clima.
Os modelos de computador predizem que El Niños podem se tornar mais frequentes. Se a atmosfera se aquece, parece óbvio que águas como as do Atlântico seguirão o mesmo rumo. E temperaturas maiores acarretam mais evaporação na floresta amazônica e nos oceanos, o que aumenta a umidade no ar.
Por incerto que seja, é prudente começarmos a nos preparar melhor para o saco de crueldades que o futuro do clima pode trazer.

MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008).
Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



Texto Anterior: Três não é demais
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.