São Paulo, domingo, 31 de maio de 2009

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B>+MARCELO LEITE

Macacos verdes me mordam


Não há lugar como a internet para tantos exibirem falta de bom senso


Jornalistas mais experimentados ensinam aos jovens uma regra de bom senso: não se deve agredir o leitor. Ora, o bom senso não é a coisa mais bem distribuída do mundo, como ensinou a ironia de René Descartes em 1637 ("cada um pensa estar bem provido dele"). Portanto, cabe repetir o conselho com frequência.
Duro mesmo é segui-lo, em particular na internet. Não há lugar em que tantos se disponham a exibir tanta falta de senso ao mesmo tempo. Manter a serenidade e a objetividade diante dos comentários encaminhados a um blog, por exemplo, é um exercício mais que indicado para manter a têmpera. Aos jovens, pelo menos.
O galho é que esses leitores mais interativos não pestanejam antes de agredir o jornalista, outros leitores e o próprio bom senso. Reeditei a experiência pela enésima vez na quarta-feira, ao noticiar no blog Ciência em Dia um feito biotecnológico significativo, a reprodução de saguis transgênicos e fluorescentes no Japão.
Para encurtar a história, direi só que a ideia dos pesquisadores da Universidade Keio é obter animais mais úteis para a pesquisa de doenças como Alzheimer e Parkinson. Em lugar de camundongos geneticamente modificados para desenvolver males semelhantes, pretendem usar macacos, bichos com fisiologia e constituição mais próximas do homem.
Esse é o objetivo final. Por ora, a equipe japonesa obteve só o que se chama de prova de princípio. Introduziu em saguis um gene de água-do-mar que faz o organismo exibir um brilho verde sob luz ultravioleta.
Não tem nada a ver com diversão. O propósito do brilho verde é verificar mais facilmente se o gene foi mesmo incorporado em todos os tecidos, inclusive nas células reprodutivas, como espermatozoides e óvulos. Foi, e o grupo conseguiu provar obtendo uma segunda geração de macaquinhos transgênicos verdes.
O assunto é polêmico, por envolver experimentos com animais e, pior, primatas. Assinalei esse aspecto controverso na nota do blog. Partilho da opinião de alguns especialistas em bioética de que macacos merecem mais proteção contra excessos em experimentação científica do que animais menos aparentados com seres humanos, como roedores.
Das cerca de 20 mil pessoas que leram a nota nas primeiras seis horas em que esteve no ar, 27 se animaram a comentar. Foi um festival de protestos contra o experimento.
Até aí, nada demais. Sentimentalismo com animais parece ser uma faculdade tão bem distribuída quando o bom senso cartesiano. O fato deprimente está nas expressões e raciocínios empregados, que de cartesianos não tinham nada.
Qualificar autores do estudo e o mensageiro da notícia como "idiotas" é um dos recursos mais usados. Prejulgar o experimento como supérfluo e cruel, outro. Defensores irrefletidos dos direitos dos animais adoram também desafiar os cientistas a se oferecerem, e a seus filhos, como cobaias de seus experimentos, em lugar de torturar os bichinhos...
Esse povo parece que nunca tomou remédios, todos testados em animais. Quantos não terão nascido por meio de cesarianas, ou foram salvos da morte por cirurgiões que treinaram técnicas de corte e costura na carne viva de cães e porcos inocentes?
Esta coluna é a primeira a advogar que não se pode dar carta branca a pesquisadores em matéria de experimentação com animais e que eles devem satisfação à sociedade sobre esforços para reduzir o sofrimento e o abuso nos laboratórios. Mas tudo tem limite -o limite do bom senso.


MARCELO LEITE é autor de "Folha Explica Darwin" (Publifolha, 2009) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog. uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br






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