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Micro/Macro
Ciência e Hollywood
Marcelo Gleiser
colunista da Folha
Infelizmente é verdade: explosões não fazem barulho algum no espaço. Não me
lembro de um só filme que tenha retratado
isso direito. (Pode ser que existam alguns,
mas se existirem não fizeram muito sucesso.) Sempre vemos explosões gigantescas,
estrondos fantásticos. Para existir ruído é
necessário um meio material que transporte as perturbações que chamamos de
ondas sonoras. Na ausência de atmosfera,
ou água, ou outro meio, as perturbações
não têm onde se propagar. Para um produtor de cinema, a questão não passa pela
ciência. Pelo menos não como prioridade.
Seu interesse é tornar o filme emocionante,
e explosões têm justamente este papel:
roubar o som de uma grande espaçonave
explodindo torna a cena bem sem graça.
Recentemente, o debate sobre as liberdades científicas tomadas pelo cinema tem
aquecido. O filme "O Dia Depois de Amanhã" e seu cenário de uma Idade do Gelo
ocorrendo em uma semana em vez de décadas ou, melhor ainda, centenas de anos,
levantaram as sobrancelhas de cientistas
mais rígidos, que vêem as distorções com
desdém, e esbugalharam os olhos dos espectadores que pouco ligam se a ciência está certa ou errada. Afinal, cinema é diversão.
Tudo começou em 1902, quando o francês Georges Méliès dirigiu o curta "Uma
Viagem à Lua". No filme, seis aventureiros
chegam até a Lua em uma cápsula disparada por um canhão. Após sua chegada, os
tripulantes são raptados por habitantes lunares com intenções nada amistosas. Os
heróis escapam, empurram a espaçonave
da beira da Lua de modo que ela caia sobre
a Terra, bem sobre o oceano Atlântico. Tudo no filme está errado, claro. A aceleração
de um tiro de canhão potente o suficiente
para levar pessoas até a Lua as mataria
quase que imediatamente. Cair da Lua é
impossível. Desconto a questão dos habitantes lunares, pois na época isso não era
sabido. Esse filme, o primeiro de uma nobre linhagem indo até "O Dia Depois de
Amanhã", exagera, inventa ciência para
criar um enredo emocionante. A questão
então é o que devem fazer os cientistas a
respeito, se é que devem fazer algo. Cabe a
eles tentar "consertar" a ciência dos filmes,
escrevendo cartas e artigos sobre o assunto? Será que faz sentido criticar a indústria
cinematográfica pelos erros crassos?
Até recentemente, eu defendia a posição
mais rígida, que filmes devem tentar ao
máximo ser fiéis à ciência que retratam.
Claro, isso sempre é bom. Mas não acredito mais que seja absolutamente necessário.
Existe uma diferença crucial entre um filme comercial e um documentário científico. Documentários devem retratar fielmente a ciência, educando e divertindo a
população. Filmes não têm um compromisso pedagógico. As pessoas não vão ao
cinema para serem educadas, ao menos
como via de regra. Claro, filmes históricos
ou mesmo aqueles fiéis à ciência têm enorme valor cultural. Outros educam as emoções por meio da ficção. Mas se existirem
exageros, eles não devem ser criticados como tal. Fantasmas não existem, mas filmes
de terror, sim. Pode-se argumentar que, no
caso de filmes que versam sobre temas
científicos, as pessoas vão ao cinema esperando uma ciência crível. Isso pode ser verdade, mas elas não deveriam basear suas
conclusões no que diz o filme. No mínimo,
cinema pode servir como mecanismo de
alerta para questões científicas importantes: o aquecimento global, a inteligência artificial, a engenharia genética, as guerras
nucleares, os riscos espaciais como cometas ou asteróides. Mas o conteúdo não deve
ser levado ao pé da letra. A arte distorce para persuadir. E o cinema, com efeitos especiais espetaculares, distorce com enorme
facilidade e poder de persuasão.
O que os cientistas podem fazer, e isso está virando moda nas universidades americanas, é usar filmes para educar seus alunos sobre o que é cientificamente correto e
o que é absurdo.
Ou seja, usar o cinema como ferramenta
pedagógica. Os alunos certamente prestarão muito mais atenção e será possível educar a população para que, no futuro, um
número cada vez maior de pessoas possa
discernir o real do imaginário.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro
"O Fim da Terra e do Céu"
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