UOL


São Paulo, quarta-feira, 31 de dezembro de 2003

Próximo Texto | Índice

GENÉTICA

Artigo afirma que inserções "inúteis" de DNA escapam da seleção natural quando conjunto de indivíduos é reduzido

População pequena tem genoma gigante

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma espécie de ameba tem mais material genético que um ser humano, enquanto camundongos e pessoas têm número parecido de genes: além de não contribuir para lustrar o ego coletivo da espécie humana, a relação entre a complexidade do organismo e a do seu genoma não tem resposta simples. Mas uma nova hipótese afirma que o tamanho das populações é o principal fator influenciando o quanto de DNA um ser vivo possui em suas células.
O código genético dos seres vivos toma a mesma forma na ameba ou no homem. São moléculas de ácido desoxirribonucléico, ou DNA, compostas fundamentalmente por longas sequências de quatro bases nitrogenadas, as "letras" químicas A (adenina), T (timina), C (citosina) e G (guanina).
Nem todo DNA se traduz em genes, as unidades do código -ou "palavras"- nas quais o organismo vai buscar especificações para a fabricação de proteínas. No ser humano, menos de 2% do DNA do genoma especifica genes. A maior parte do restante é chamado de "DNA-lixo", sequências que se acumularam por milhões de anos sem utilidade aparente.
A nova hipótese ajuda a explicar essa enorme quantidade de DNA-lixo nos organismos mais complexos, os eucariotos. Eles têm seu material genético num núcleo envolto por uma membrana, e não disperso pela célula, como nos mais simples procariotos, cujo exemplo típico são as bactérias.
A hipótese foi divulgada em um artigo na revista científica norte-americana "Science" (www.sciencemag.org) por Michael Lynch, da Universidade de Indiana em Bloomington, e John Conery, da Universidade de Oregon, em Eugene (ambas nos EUA).
Os pesquisadores compararam os cerca de cem genomas já sequenciados de bactérias e similares com os de organismos multicelulares como plantas e animais. Incluíram também na comparação o tamanho das populações.

Repertório da espécie
Como pano de fundo está a idéia de que alguma modificação no genoma de um indivíduo tem de ser repassada a toda a população para que possa ser considerada parte do repertório da espécie.
Três forças evolutivas moldam o genoma de uma espécie. São as mutações no próprio material genético, a seleção natural -o mecanismo pelo qual os indivíduos mais adaptados ao ambiente deixam mais cópias de seus genes em uma prole maior- e o simples acaso, conhecido como deriva genética (ou "drift") pelos biólogos.
"Após a mutação ocorrer, ela estará sob os olhos atentos da seleção natural. Se ela causar uma má adaptação, essa mutação será rapidamente eliminada do pool genético", diz o brasileiro Marcelo de Aguiar Nóbrega, pesquisador do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, na Califórnia (Costa Oeste dos EUA), e descobridor de estruturas importantes em locais do genoma considerados antes um "deserto" de genes.
Mutações neutras, que nem favorecem nem prejudicam a sobrevivência, só vão permanecer no genoma graças à deriva genética. "Uma mutação que ocorrer em um indivíduo pode na geração seguinte estar presente em 20 indivíduos, caso o "mutante" tenha se reproduzido prolificamente, ou não estar mais em nenhum, caso o mutante não tenha se reproduzido, seja lá por que razão for", explica Nóbrega.
O argumento básico de Lynch e Conery é que o tamanho da população é fundamental para determinar que rumos tomará uma mutação. Quanto maior a população, mais difícil será que essa mutação se espalhe por ela, porque haverá mais chances de que processos randômicos (isto é, ao acaso) acabem por eliminá-la.
"Para mim, a questão-chave seria: qual é o tamanho genético "efetivo" da população de uma espécie a longo prazo? Pela minha hipótese, é provável que tenha sido bem pequeno, o que diminuiria a eficiência da seleção natural, portanto permitindo a acumulação de muitas inserções de DNA que, de outro modo, seriam removidas pela seleção", diz Lynch.

Cautela
"É preciso ser cauteloso, porque a análise dos dois foi baseada apenas nos genomas que foram sequenciados, e esses foram escolhidos quase sempre porque eram pequenos", diz o canadense T. Ryan Gregory, um dos maiores especialistas em estudo comparativo de genomas e hoje no Museu de História Natural de Londres.
"Outros organismos, como salamandras ou peixes com pulmão, cujos genomas podem ser bem maiores que o humano, não foram incluídos, porque não foram e talvez nunca sejam sequenciados", afirma Ryan. "A verdade é que nenhum parâmetro único vai explicar toda a variação no tamanho de genomas, mesmo apenas entre animais."
Já nos anos 40 do século passado os cientistas notaram que o tamanho dos genomas era constante nas espécies -e isso serviu mesmo como prova de que era o DNA, e não as proteínas, o material hereditário. Mas logo se percebeu que o tamanho do genoma -conhecido como o "valor-C"- não estava diretamente ligado à complexidade do organismo.

Paradoxo
Nos anos 70, essa contradição foi chamada de "paradoxo do valor-C", que de certo modo se resolveu quando se descobriu que a maior parte do DNA era "lixo" não-codificante.
Como é praxe na ciência, a descoberta serviu para criar mais dúvidas. O paradoxo virou enigma.
"De onde vem o DNA não-codificante? Por qual mecanismo ele é ganho e perdido nos genomas? Ele tem algum efeito ou função? E por que algumas espécies têm muito, enquanto outras têm pouco? Juntas, essas questões compõem hoje o enigma do valor-C", afirma Ryan.



Próximo Texto: Espaço: Nave muda de órbita e busca sonda Beagle-2
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.