Entrevista - Lygia da Veiga Pereira
Produtos feitos a partir de células-tronco deveriam ser vendidos
PARA GENETICISTA DA USP, VETAR O COMÉRCIO DE SUBSTÂNCIAS PRODUZIDAS A PARTIR DE CÉLULAS DE EMBRIÕES, COMO NEURÔNIOS, PODE IMPEDIR AVANÇO DE TERAPIAS
A geneticista e professora titular da USP Lygia da Veiga Pereira defende que substâncias obtidas a partir de células-tronco embrionárias, como neurônios, sejam comercializadas.
Tais produtos poderiam ser usados no tratamento de doenças como parkinson.
A Constituição proíbe a comercialização de substâncias humanas, como o sangue. No entanto, a pesquisadora questiona se bilhões de novas células produzidas a partir de um punhado de células-tronco embrionárias podem ser consideradas substância humana, já que teriam sido completamente sintetizadas em laboratório.
Segundo Pereira, uma nova interpretação dos produtos finais das células-tronco embrionárias, que são capazes de se transformar em qualquer tecido, poderia levar a iniciativa privada a investir em terapias celulares.
O assunto foi tema de discussão em reunião recentemente promovida pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial.
Veja trechos da entrevista concedida à Folha.
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Folha - A Constituição diz que é vedado todo tipo de comercialização de órgãos, tecidos e substâncias humanas. Como ficam, nesse caso, as células-tronco embrionárias?
Lygia da Veiga Pereira - Nossa sociedade não tolera a venda de órgãos ou qualquer substância humana, e isso é bom porque protege indivíduos vulneráveis que possam, por desespero, ficar tentados a vender um rim para dar de comer aos filhos.
Só que hoje as células humanas podem salvar vidas. E agora, essas células podem ser comercializadas ou não? Há dúvidas sobre a interpretação desse artigo na Constituição, e não está claro se há ou não uma vedação constitucional para registro e comercialização dos produtos de terapia celular no Brasil.
Qual a importância dessa discussão, neste momento?
Se não regularmos isso direito, daqui a pouco haverá gente vendendo medula óssea, sangue de cordão umbilical, placenta, gordura, embriões e outras substâncias humanas --de onde podemos extrair células-tronco-- e não queremos isso.
Essa é também uma questão crítica para o desenvolvimento das terapias com células-tronco no país. Se for compreendido que essas células são substâncias humanas cuja comercialização é vedada, a iniciativa privada não investirá no desenvolvimento das terapias celulares.
Por mais bacanas que as pesquisas nas universidades sejam, sem a iniciativa privada não sabemos como transformar os conhecimentos que geramos em produtos para a sociedade.
Como as células-tronco embrionárias podem deixar de ser substância humana?
Células-tronco embrionárias são uma substância humana, por isso elas só podem ser doadas para a pesquisa.
O que fazemos no laboratório é usar 50 células-tronco embrionárias, adicionar uma porção de reagentes comerciais e transformá-las em 10 bilhões de outras células.
Se eu quiser tratar alguma doença, como mal de Parkinson, aí terei que usar outra porção de reagentes para transformá-las, por exemplo, em neurônios.
Como está a discussão atual com relação a interpretação jurídica da constituição?
Em uma reunião recente promovida pela ABDI [Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial], Raul Lycurgo [consultor jurídico no Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior] apresentou um parecer genial: ele separou a substância humana inicial (ou o antecedente) do produto final (o consequente").
Segundo ele, enquanto o parágrafo 4º do artigo 199 veda a comercialização do antecedente, ele não impede a comercialização do consequente. A Constituição, então, veda a venda do embrião --ele só pode ser doado--, mas não proíbe a comercialização das células produzidas a partir dele, como neurônios.
Veja, aqueles bilhões de neurônios não foram retirados do cérebro de ninguém. Eles foram sintetizados no laboratório a partir de litros e litros de reagentes, usando como matriz as poucas células retiradas do embrião. Proponho até classificá-los como "substância humana sintetizada em laboratório", para distingui-los das substâncias humanas "naturais".
Então é possível reinterpretar a Constituição...
O ministro Ayres Britto complementou o parecer dizendo que o parágrafo 4º do artigo 199 não só não proíbe como autoriza a comercialização. Segundo o ministro, não faria o menor sentido a atuação da iniciativa privada na assistência à saúde se não houver comercialização.
Como concluiu o ministro: "As coisas evoluem mais com um novo par de olhos do que com uma mudança de texto".
Nunca tivemos um parecer tão positivo sobre isso. Precisamos ter um arcabouço legal, caso contrário a pesquisa vai ficar confinada à universidade e não vai crescer.
A sra. participa ou tem alguma relação com alguma indústria ou banco de células?
Fui consultora da Cordvida [um banco de células] no momento da sua fundação, mas depois não tive nenhuma outra participação.
Como a crise pela qual a USP vem passando afetou as pesquisas?
A USP é a melhor universidade que temos em produtividade e pós-graduação. Não tenho dúvida de que estou no melhor lugar no Brasil. Mas houve falhas na gestão financeira.
Ganhamos um edital da pró-reitoria de pesquisa da USP para receber R$ 170 mil e estabelecer um centro de ensino de cultura de células, mas é provável que a administração atual não consiga honrar esse dinheiro.
Existem outros entraves que dificultem a pesquisa hoje?
A demora para que um projeto tenha um parecer do Conep [Comitê nacional de Ética em Pesquisa].
Um projeto meu para estudar IPS [células adultas que, manipuladas em laboratório, retornam a um estado similar ao embrionário] e doença de Parkinson levou mais de dois anos para ser aprovado.
Outra coisa são as barreiras alfandegárias para reagentes. Demora muito. É é perverso porque você começa a trabalhar com questões mais simples. As pessoas podem deixam de ousar para evitar a frustração.
Se você depende de reagentes que vão demorar pra chegar, a chance de fazer essa pesquisa antes de outra pessoa em outro lugar no mundo é muito pequena.