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Nina Horta

Literatura para cozinhar

A literatura reconstrói nosso lugar no mundo, nos desenha, é um espelho para que nos vejamos melhor

Vivo dizendo aqui que para sermos bons cozinheiros precisamos ler não só livros de comida, mas romances, principalmente. Arranjei uma base científica para minha conversa mole. Adivinhem de onde vem? Do lugar mais inesperado, a neurociência!

Os estudos do cérebro mostram o que acontece nas nossas cabeças quando lemos uma descrição detalhada, uma metáfora evocativa, uma história. Nossos cérebros são estimulados e podem até mudar o nosso modo de agir.

Imaginem que palavras como "lavanda", "canela" acionam respostas não só das partes processadoras de ideias, mas das partes que lidam com cheiros. "Perfume" e "café" fazem brilhar uma parte. Já "chave" e "cadeira" deixam aquela mesma parte escura.

Adivinhem se não é por isso que nós, cozinheiros, que sabemos das coisas por intuição, nomeamos um canapé simples de "trouxinha de papoula recheada de queijo de cabra da serra com cerefólio colhido no orvalho da madrugada na horta das ervas finas". Achei mais ético escrever "trouxinha com queijo", para não manipular o cérebro dos clientes, mas não deu ibope.

"Papoula", com esses dois "pês" estalando, a ilusão de um vício, a profundidade do "u", a subida do "la", ah, "papoula" é imbatível. É claro que minha explicação é tosca, não entendo nada de neurociência, estou só passando adiante o que dizem os cientistas.

Até entendi por que esses livros "pornô soft" fazem sucesso. As mulheres sempre entram em carros com cheiro de couro novo, deslizam por sofás aveludados e roupa de cama acetinada. "Cinquenta tons de cinza", cada um bombardeando o nosso cérebro a 200 por hora.

Tudo leva a crer que o cérebro não distingue entre a leitura de uma experiência e da experiência em si, na vida real --em ambas, as mesmas regiões neurológicas são estimuladas.

A leitura provoca uma simulação vívida da realidade. O que leva a crer que a leitura de ficção, com seus detalhes, descrição de pessoas e suas ações, nos oferece uma réplica rica da experiência verdadeira.

Olhem só, já é uma pequena explicação, talvez (não quero me meter em assuntos que não conheço), para a nossa mania atual de assistir a programas de comida na TV.

O cérebro nos engana, e pensamos que estamos cozinhando. "Não foi você que fez esse nhoque, seu ignorante, foi o Jamie Oliver!" Mas o marido sai de frente da TV feliz da vida com a mão que deu no jantar.

A literatura reconstrói nosso lugar no mundo, nos desenha, é um espelho para que nos vejamos melhor. E não são só as coisas que acontecem, os fatos, a informação exagerada a que estamos submetidos que nos formam.

A leitura de um bom romance é uma viagem visceral, é uma experiência, é um jeito de ter novos olhos e ouvidos. Somos capazes de captar por meio da literatura forças e energias que nos sacodem, de verdade. Ler boa literatura, conviver com a arte nos faz crescer como seres humanos. A ciência do cérebro mostra que isso é mais verdade do que se imaginava.

Você foi à Flip, cozinheiro?? Pois sua feijoada de hoje em diante vai sair muito mais gostosa.


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