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Nina Horta

Saudosismo na cozinha

Cada dia mais as pessoas querem comer o que caiu em desuso a partir das décadas de 1970 e 1980

ACHO QUE estamos na primavera árabe da revolução do gosto do povo. Cada dia mais as pessoas estão querendo comer o que caiu em desuso a partir da década de 1970 e 1980. Ou mesmo de 1950.

Quando parece que não há volta possível, as entranhas desejam, querem comer o brega, têm "nostalgie de la boue", choram por um bom frango assado com farofa.

Fingem que querem outra comida mais contemporânea, até que se esforçam, mas têm sonhos recorrentes de sanduíches de atum com cebola, de mergulhar num pote de maionese comprada, de chafurdar em bocados de botequim com cerveja. Não querem nada ruim, nada malfeito, querem bom e bem-feito, mas que seja reconhecido e que tenha a calma do "déjà vu".

Agora é de verdade, não são gracinhas. No aniversário de casamento, vamos lá comer lulas na tinta de pequi com alho e ter a experiência perfeita. Mas, no intervalo, queremos ir às ruas e bradar com bandeirinhas pelo velho. O que é o velho?

Um pãozinho francês recheado de carne moída, no forno, para comer com uma salada.

Uma banqueteira me contou que os clientes pediram um coquetel moderno na sua própria casa e a intimaram a fazer coxinhas de galinha na cozinha especialmente para eles que iam lá às escondidas. Pode?

Estrogonofes continuam sendo feitos em casa, as crianças se lambuzam de batatinhas palha, a carne de ponta de faca com molho grosso, a ternura dos champinhons.

Tenho um bufê há 26 anos e nunca consegui emplacar um estrogonofe, mesmo em festas dos anos 50.

Experimentei no outro dia aquele palito com uma cereja de lata e um pedacinho de queijo e, pasmem, criaturas, pasmem, era gostoso, até ruborizei ao comer mais alguns, se me pegassem no flagra!

A empadinha é coisa deliciosa, mas não para coquetel, alimenta demais. Os croquetes, aqueles cremosos por dentro e crocantes por fora, também, se bem-feitos, como os holandeses, não são de se jogar fora.

Ao contrário, pitéu dos deuses. Lembro de um cliente, embaixador na Índia que, chegando ao Brasil, soube que as empadas tinham caído em desuso, ao menos em São Paulo. "Deus do céu," gemeu ele, "pois que me aposentei só por causa das empadas! Volto às famosas, mas com o coração partido".

Que lado da nossa cabeça é doente com essa coisa de brega?

Fiz uma pesquisa sobre o kitsch na cozinha e me deu o maior trabalho. Tudo o que é bom de verdade não pode ser kitsch. Um pernil não é kitsch, mas, se todo espetado com margaridas e pequenos chapéus de champinhons, pode ser.

Então, kitsch só na forma, o saboroso nunca pode ser classificado como kitsch, não é? Loucura da nossa cabeça. Pode-se enjoar de comer a mesma coisa sempre, o que é completamente diferente, e também pode pavimentar revoluções, mas nada que se enjoe por 50 anos.

Hoje comemos vitela com massa em todas as festas. "Beware", vitela, sua vez está chegando, o salmão já levou a dele. Comporte-se porque a próxima será você. A patuleia já está bordando as camisetas. Que-re-mos co-xi-nha!!! E ninguém vai lhes dizer que comam brioches.

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