Nina Horta
Tchau, ingenuidade
Depois de sentar à mesa de sempre, vai ser mais fácil pensar num mundo para sobreviver conosco
Um prato de comida é um prato de comida, um prato de comida? Ingênuo, cheiroso, gostoso? Nada disso, na verdade nunca foi. Por trás de uma mandioca frita há mais política do que nos últimos dias da campanha eleitoral.
Comer e cozinhar é um jeito de se ligar. Ligar ao chão, à planta que cresce, aos bichos, ao prazer, ao maduro, ao verde, às lembranças, às histórias contadas, ao livro de receitas desbeiçado que foi da avó, à viagem que deu papo para uma vida.
Atualmente, por causas variadas, não é mais possível enfrentar o frango assado, castanho, brilhante acompanhado de batatas fritas e a farofa chiando ao lado somente com a perspectiva de satisfazer a fome. A galinha reclama explicações, parece um filho adolescente, quer saber quem é, de onde vem para onde vai. Antigamente, a canja da mãe judia curava as náuseas existenciais. Hoje, a galinha é que é infeliz e que tem que ser tratada solta com milho do amarelinho. É a ansiedade pura, quer seus documentos de identidade.
A comida chega ao prato sacudida, extenuada, anunciada, tabelada, exposta no mercado, comentada nos reality shows, diva dos jornais, das revistas, dos livros, mais glamorizada que a Bündchen. Filmes, literatura, todos falam da galinha no nosso prato, virou um gênero literário... De repente todos querem entender de comida --aliás, pelo jeito, só pensam nela.
Percebemos por causas variadas que a comida não é só boa de comer, mas serve também para pensar. O que nos deixa tontos nos supermercados e o que antes era só uma tarefa doméstica virou uma lição de casa a ser estudada com lupa nos pacotes que compramos.
Onde jogar o plástico da embalagem, que ideia foi essa de inventar a embalagem, a geladeira, a luz fortíssima? Por que não nos satisfizemos com a vaca, a caneca, a casinha no terreiro varrido? Quem teve a ideia das grandes cidades, dos engarrafamentos, dos shoppings, dos condomínios fechados, dos carros blindados? Meu Deus, fizemos tudo errado, como foi que alguém mais sabido não percebeu que estávamos comendo o mundo às dentadas?
Foi-se embora o frango ingênuo. Hoje, ele atravessa nosso bolso, expõe riqueza, pobreza, fome e fartura. Carrega em si o fim do mundo, o apocalipse, a utopia, a esperança num mundo justo. E nós, simples mortais urbanos, vamos fazer o quê? Começar por onde? Como resolver a vida da galinha? E a nossa? Tudo que nos passa pela cabeça é mínimo, é pequeno, é um grão de areia. E se o calorão chegar? E se a comida acabar? E se a crise piorar?
Alguns acham que é preciso começar em casa, mas a maioria das pessoas educadas sempre fez o que é óbvio. Economizou água, plantou seus temperinhos, não deixou derrubar árvores, evitou o desperdício, teve espírito de comunidade, quais são os próximos passos?
Por hoje eu sei. Sentar à mesa com as mãos lavadas, colocar os pratos que você tem e com os quais está acostumada. A jarra pequena com água de coco gelada, a galinha feliz, mas, assada em casa, um vasinho kitsch de flor. Depois disso, comer o frango e a farofa e de barriga cheia, aí, sim, vai ser muito mais fácil pensar com esperança num mundo que sobreviva conosco.