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Nina Horta

Deixemos o status cair

Vamos diminuir a prata, as velas, as flores, os garçons, as copeiras e a frescura

Minha bola de cristal anda revoando, brilhando, maluca, histérica, querendo adivinhar o futuro dos bufês, da comida que se compartilha, da comida em casa.

Acabou-se, acabaram-se junto com as empreguetes que montaram uma banda e saíram pelo mundo, de botas, maquiadas e livres. Qualquer pequena festa se torna um problema (a festa rica não acabou nem precisa acabar. Mas só a peso de ouro, de muito ouro, do ouro justo).

Então, vai acabar o quê? O exagero descabido. As mesas com saladas de folhas e de grãos, suflês, peixes, aves, acompanhamentos, carnes, massas, comidas para os vegetarianos e alérgicos.

Bola de cristal, como é que o Brasil ainda quer festejar como nos bailes da Ilha Fiscal? E se não podemos mais levar adiante a arte da hospitalidade, se não temos mais tempo para o brilho e para as louças das Indias, para o fogo das panelas, o calor do cozido, o gelado do champanhe, o dulcíssimo das sobremesas? Vamos morrer na praia, nós, o povo cordial, por falta de dinheiro e tempo de compartilhar a comida?

A culpa é nossa, festeiros muito cheios de ares e pretensões. Há coisas que não vemos mesmo de olhos muito abertos. Estamos repetindo rituais de 200 anos atrás nessa terra tropical. Presos a regras, festejos de cortes. Nossos bisavós faziam assim, vamos fazer diferente. Qualquer mudança é sentida como queda de status. Deixemos o status cair, quem já botou pra rachar, aprendeu que é do outro lado, do lado de lá do lado que é do lado de lá...

Vou só fazer umas perguntas inocentes, prometo, para todos nós, inteligentinhos. Em qual revista ou livro estrangeiro ou nacional nos últimos 50 anos, temos visto bandejas de canapés variados? Gente, a última foto de canapé saiu no "Cruzeiro", revista semanal ilustrada.

O que é um canapé? Uma porçãozinha de pão ou torrada, milimetricamente cortada, tendo em cima um quadrado de foie gras exatamente do mesmo tamanho, coberto por uma gelatina de Sauternes.

Ou uma cestinha de papoula feita na frigideira, posta para moldar na boca de uma garrafa e recheada na hora para não ficar úmida, com uma árvore de cerefólio por cima. E assim vai a litania destas peças do tamanho de uma unha (da Alcione), feitas com cuidado de ourives.

Festeiros, atenção. Acabou. Estamos representando a mesma peça sem perceber que o texto caducou. Os nove canapés vão ser substituídos por uma sopa divina, uma salada nunca dantes tão frescota, e talvez uma colherada de massa.

Já é muito, já é demais. Permitido, um prato principal único. O excesso saiu de moda, virou brega. E quantos garçons? Um.

Agora é self-service, chega de levantar o dedo mindinho e entregar a flüte morna para ser substituída por outra geladinha. Vamos até o bar de um único garçom e sirvamo-nos, sorrindo.

A bola de cristal desconfia que vamos criar juízo, diminuir a comida, não em quantidade, mas em variedade, vamos diminuir a prata, as velas, as flores, os garçons, as copeiras e a frescura. Só nós é que ainda não percebemos que estamos de malas prontas pro Divino.

ninahorta@uol.com.br

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