São Paulo, quinta-feira, 04 de agosto de 2011

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A ÚLTIMA CEIA

Estivemos no último dia do El Bulli, o restaurante mais premiado do mundo, e comemos os pratos feitos por Ferran Adrià e pelos melhores chefs do mundo

Leornardo Wen/Folhapress
No sábado passado, último dia do restaurante El Bulli, Ferran Adrià reuniu cinco dos melhores chefs do mundo, ex-estagiários da sua cozinha

VINÍCIUS QUEIROZ GALVÃO
EDITOR DO COMIDA, ENVIADO A ROSES

O taxista de Barcelona não acredita -ele acha que é piada- e insiste em saber o destino certo. "O senhor vai mesmo a Roses para o enterro do restaurante? El Bulli morreu."
A sorte é que Ferran Adrià, 49, o chef catalão que transformou os códigos da gastronomia na última década, acredita na reencarnação.
"Criei um monstro e precisava dominá-lo", disse Adrià.
A ressurreição do restaurante, eleito cinco vezes o melhor do mundo, é na já anunciada fundação, um "think-tank" gastronômico dedicado ao experimentalismo.
No fechamento do Bulli no sábado passado, Adrià sentou ao centro da mesa diante de um grupo de jornalistas (a Folha era o único jornal convidado do Brasil).
Como na imagem da última ceia, estava ladeado de apóstolos, cinco dos atuais melhores chefs do mundo.
René Redzepi (o número um, do Noma), Joan Roca (o segundo, do El Celler de Can Roca), Andoni Luis Aduriz (o terceiro, do Mugaritz), Massimo Bottura (o quarto, da Osteria Francescana) e Grant Achatz (o sexto, do Alinea).
Todos foram aprendizes de Adrià no Bulli. A revolução -termo do próprio Adrià- não só derrubou séculos de hegemonia da "haute cuisine" francesa, mas criou seguidores a pregar a filosofia e as técnicas de cozinha do Bulli.
"Uma das razões para transformar o Bulli numa fundação é que o meu trabalho passou a ser conseguir mesa para as pessoas", disse Adrià.
Eram dois milhões de pedidos de reserva por ano para 48 lugares que não se renovavam a cada noite.
Com tantas petições, o critério era o sorteio. A loteria premiava 8.000 candidatos, o restaurante só abria para o jantar, não tinha cardápio e cobrava € 250 (R$ 600, sem bebida) pelo menu-degustação.
Fechado seis meses para criar técnicas, o Bulli tinha prejuízo anual de € 500 mil.
"Houve muito poucas revoluções na cozinha. As mudanças eram mais de linguagem", afirma o chef Aduriz. "O Bulli mudou a cozinha do mundo", diz Roca.
"Com Adrià, fomos elevados à condição de artista", continua o italiano Bottura.
Às 18h30, uma hora e meia antes do horário habitual, o último jantar foi servido. Da cozinha, saíram 50 pratos para 50 comensais -cristal de soja, papel de flores, globo de gorgonzola e esferificações.
No menu-degustação, uma homenagem a Auguste Escoffier (1846-1935), o chef francês que codificou muito das técnicas e dos métodos da cozinha tradicional com viés modernizador. Foi servido uma "fondue Melba", recriação da receita feita em 1893 para a soprano Nellie Melba.
Entre um prato e outro, Adrià pediu aos convidados que anotassem um desejo para a nova fundação El Bulli.
Depois do jantar, uma festa para a equipe, com banho de mar, champanhe ("cava", Adrià se corrige), fogos de artifício e 12 badaladas.

ALTA-COSTURA
No Bulli, ninguém mata a fome; vai experimentar. E isso abriu uma perspectiva muito além da comida.
Quem vê os desfiles do prêt-à-porter acha os vestidos da alta-costura esquisitos, incapazes de serem usados. Em dois tempos, estilistas menos prestigiados filtram o conceito para as lojas de departamento e a vanguarda pega.
Assim foi com Adrià. Há dez anos ele não faz mais espuma, uma de suas técnicas mais difundidas.
Adrià também angariou uma legião de desafetos, como o chef espanhol Santi Santamaría (morto neste ano), para quem a "onda científica aleijava a cozinha".
Para o crítico de gastronomia Jörg Zipprick, da revista "Vogue" alemã, Adrià abriu as portas para os "aditivos e aromas de laboratório da indústria alimentícia".
Richard Vines, diretor do prêmio 50-Best no Reino Unido, ressalta um lado marqueteiro de Adrià: embora fosse impossível conseguir uma reserva, críticos e jornalistas tinham preferência na espera.
"A fundação agora existe para que, quando eu não estiver mais aqui, o espírito do Bulli continue", diz o chef.
Com essa transformação, Adrià passa a desconstruir a si próprio porque o Bulli -ele balança a cabeça em negação- "nunca mais".

FOLHA.com
Leia o manifesto de Ferran Adrià sobre a cozinha molecular
folha.com/co953397


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