São Paulo, quinta-feira, 26 de maio de 2011

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Banquete de santo

Pratos típicos da cozinha brasileira, como vatapá e caruru, nasceram nos terreiros do candomblé; comida é a ligação entre os fiéis e os orixás

Eduardo Knapp/Folhapress
A mãe de santo Jaciara Ribeiro com o Ipeté, oferenda da orixá Oxum, estampada na parede

LUIZA FECAROTTA
ENVIADA ESPECIAL A SALVADOR

Único orixá presente em todos os rituais do candomblé, Exu comia de tudo e sua fome era incontrolável.
Acabou com todos os animais de sua aldeia, com o inhame, com as frutas, com o vinho. Deixou os homens à mingua, sem ter o que comer.
Diz a lenda, compilada no livro do sociólogo Reginaldo Prandi, "Mitologia dos Orixás" (Cia. das Letras), que depois dessa catástrofe, Exu passou a ser o primeiro santo a receber as oferendas em qualquer culto sagrado -e sempre com fartura.
No candomblé, religião de origem africana que se fixou na Bahia, a comida desempenha um papel simbólico importante.
"Oferendas de comida são uma das formas de comunicação com os orixás", diz o antropólogo Ordep Serra.
O núcleo fundamental da cozinha baiana, como foi batizada, tem base nas cozinhas dos terreiros, que resguardam receitas autênticas.
"As religiões tradicionais de matriz africana foram verdadeiros memoriais não só da comida, mas dos idiomas, da dança, da música", diz o antropólogo Raul Lody.
De hábito, se muda rapidamente. Mas a crença religiosa é mais difícil de ser alterada, "são modelos mais rígidos para transformações".
Daí nasce, então, o receituário de origem africana -de onde vieram, nos navios negreiros, dendezeiros, pimentas, inhame-, marcado por influência dos índios e dos portugueses.
Apoiada em três pilares -o camarão seco, a cebola e o azeite de dendê- essa cozinha dá forma a pratos recorrentes à mesa, ainda hoje fora dos limites da Bahia.
São criações como o caruru, que combina esses três elementos mais o quiabo, o acarajé -que se faz de uma pasta de feijão-fradinho frito em dendê- e o xinxim de galinha, ao qual se acrescenta, originalmente, sementes de abóbora ou de melancia.

FAROFA
Há ainda os bobós, o vatapá (feito de uma mistura que leva dendê, camarão seco e pão, para engrossar), o feijão com azeite e a farofa -que se repete em versões como a temperada com dendê.
No restaurante Yemanjá, em Salvador, por exemplo, os pratos incorporam outros ingredientes. O caruru é incrementado com tomate e coentro, o acarajé leva alho, item rejeitado nos terreiros.
No Zanzibar, também na Bahia, a chef Ana Célia mantém a tradição, mas diz que há adaptações em outros restaurantes, que não se restringem ao trio de temperos das origens - camarão seco, cebola e azeite de dendê.
Nos terreiros, os pratos exigem ainda um preparo especial e ficam a cargo de uma cozinheira, designada pelos orixás quando estão manifestados nos seguidores.
Há que se purificar, descansar, passar por um banho de ervas (manjericão, arruda e tantas outras).
"Até a seleção dos ingredientes já é um ritual", diz Jaciara Ribeiro, 43, mãe de santo do terreiro Axé Abassé de Ogum, em Salvador. Para o antropólogo Ordep Serra, no candomblé tradicional, um dos cargos mais importantes é da "cozinheira dos deuses".
Também há pessoas específicas designadas para realizar o sacrifício dos animais. Bodes, pombas, galos, galinhas d'angola (e outros) são imolados nos rituais religiosos, mas antes sacralizados por meio de rezas e cânticos.
De acordo com a predileção de cada orixá é que se prepara a oferenda, arriada aos pés do santo num altar.
Lava-se a cabeça e os pés dos animais antes do sacrifício. A parte comestível é compartilhada nas festas. Os orixás, aliás, só aceitam o que é dividido com o povo.
Sabe-se ainda de alimentos rejeitados pelos santos -as quizilas. Devem ser também deixados de lado pelos devotos -que podem adoecer ou ter azar se contrariarem os costumes de seus orixás. Mais um elemento que reforça a presença contínua da comida no candomblé.


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