São Paulo, quinta-feira, 26 de maio de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

NINA HORTA

O professor francês


Laurent sabia que o Brasil precisava de cozinheiros, que levavam jeito, mas não tinham técnica e disciplina


"QUEM COMEÇOU toda essa história de comer, comer e comer?, pergunta-me um rapaz que está começando a escrever sobre comida e só conhece o Alex Atala. "Eu sei", respondo. "Eu estava perto. Foi o Laurent Suaudeau, hoje dono de uma escola e da sorveteria Vitipeno."
Um cherne em crosta de camarão seco com "galette" de tapioca em calda de pitanga e coco! Sim, chef! Uma "mousseline" de mandioquinha e caviar! Sim, chef! E longe daquela vitela recheada com legumes! Sim, chef! Hoje vamos aprender a tratar o budião azul e a queixada. Sim, professor!
Tudo aconteceu ontem, em 1980. O chef Laurent Suaudeau chegou ao Saint-Honoré, no Rio de Janeiro, indicado por Paul Bocuse, com quem trabalhava. De cara encontrou Sissi, uma piauiense de cabelos negros como a asa da graúna.
Casou, encantou-se com os ingredientes, apavorou-se com a fraca mão de obra. Imediatamente aflorou seu didatismo, viu que adorava ensinar, que o Brasil precisava de cozinheiros, que eles levavam jeito, mas não tinham técnica nem disciplina.
Vou corrigir isso, pensou. Vou lutar ao mesmo tempo pelo ingrediente e pelo cozinheiro. Em 1991 resolveu se estabelecer em São Paulo e fazer isso aqui.
E aí dominou a cena. Tinha restaurante, mas o seu xodó era dar aulas, era ter assistentes para ensinar a cozinhar, gente que da profissão mais maltratada do Brasil ia se alongando, perdendo o olhar cansado, se uniformizando, aprendendo a ter orgulho do trabalho, entrando em concursos, treinando, foi uma bela jornada essa a que assisti, capitaneada pelo Laurent. Uma perseverança inacreditável. Teimoso como uma mula.
Numa das últimas entrevistas, já o encontrei nos escritórios da Fispal, sem fogão por perto, estruturando toda a Gourmet Show que era a parte das aulas, dos concursos, dos cozinheiros estrangeiros que convidava, como Joël Robuchon, Roger Jaloux, Daniel Boulud.
Na época só pensava em trazer a "appellation controlée" (origem controlada) para os ingredientes brasileiros. Ele, o melhor cozinheiro do Brasil, o homem da técnica, do estudo, mãos calejadas de descascar milhões de batatas enquanto aprendiz, agora consultor e professor, ria, descansado e feliz.
"Eu me sinto mais brasileiro que francês, mas tive a sorte de nascer lá, herdei o cartesianismo e a disciplina de um bom curso de cozinha."
Na sua bagagem, a generosidade de tudo ensinar e de querer um Brasil melhor. Quantas vezes, no passado, eu me peguei rindo dele, ao vê-lo pleitear cozinheiros imaculados, de toque, de uniforme, de mesas impecáveis, com "timing" de relógio e utensílios adequados.
Tudo isso para fazer uma moqueca, Laurent? Como nos arranjávamos antes de você chegar? Como é que as baianas se viravam com os acarajés antes que aportasse nessas praias de coqueiros?
Mas o Laurent ganhou a parada, conseguiu, mudou o panorama da cozinha, temos que dar a ele os créditos que merece. Do alto de seu sucesso, insiste: "É preciso dominar bem a técnica, depois, sim, alterá-la e criar sobre ela, mas os fundamentos... Aaahhh, os fundamentos, esses são intocáveis!

ninahorta@uol.com.br


Texto Anterior: Raio-X: Shoppings
Próximo Texto: 'Facinha' e gostosa
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.