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Minha história Sérgio Vaz, 47

Poesia na perifa

(...)Nossa maior conquista na Cooperifa é estimular quem não sabe ler a aprender para escrever seus próprios versos na vida

ANDRÉ CARAMANTE
DE SÃO PAULO

Lembro quando o sargento Lúcio me flagrou no quartel do Exército ouvindo "Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores", na voz da Simone. Era 1983. Eu tinha 18 anos e era soldado. Ele me chamou de mocorongo, comunista e praguejou para não ouvir aquelas músicas. A cena do militar me transformou.

Tive certeza de que viveria da literatura e que enquanto alguns capitalizavam a realidade, eu fazia parte dos que socializavam sonhos.

Trazia o gosto pela leitura desde os 13 anos, quando meu pai, um operário da Bombril, me estimulou a ler. "Eram os Deuses Astronautas?", do suíço Erich von Däniken, "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez, foram um baque.

Saí do Exército e pulei de emprego em emprego. Terminei o ensino médio, mas sentia profunda tristeza por querer estar perto da literatura e ter de dedicar tempo para outra vida. Revolucionário é todo aquele que quer mudar o mundo e tem a coragem de começar por si mesmo. Fui para o mundão.

Como no fim dos anos 1980 não pegava bem ser poeta na minha quebrada, o Jardim Guarujá, na zona sul da capital, onde vivemos semanas nas quais 50 pessoas foram mortas, virei letrista de um grupo musical. O máximo no meu bairro era ser operário padrão. Recusei aquela vida.

Quando ia ao centro de São Paulo com meu pai e via a vida cultural, sentia necessidade de levar tudo aquilo para a periferia. Em 1988, publiquei o primeiro dos meus sete livros lançados até hoje.

Dividia o tempo entre o trabalho burocrático, a música e as aventuras futebolísticas nos times de várzea. Era um médio volante à la César Sampaio [ex-jogador do Santos, Palmeiras -time de Vaz- e seleção brasileira].

Em 2001, eu e meu amigo Marcos Pezão criamos a Cooperifa, a Cooperativa Cultural da Periferia. Começamos num galpão abandonado.

Os nossos saraus são quilombos para onde os escravos fogem para se expressar. Na Cooperifa, o microfone é aberto para qualquer um. Ninguém é obrigado ajudar o próximo. Nem a ficar de braços cruzados.

Depois da fábrica, fomos para um bar chamado Garajão. Ficamos lá dois anos, até mudarmos, em 2003, para o Bar do Zé Batidão, que havia sido de meu pai por 12 anos e foi vendido.

No Batidão, nosso trabalho na Cooperifa ganhou reconhecimento nacional e, hoje, existem cerca de 60 saraus como o nosso espalhados por várias cidades do país. Só acendi o estopim disso. A Cooperifa é uma demonstração de que a literatura liberta e de que podemos sonhar com as nossas próprias mãos.

Em 2009, tive a honra de ser eleito pela revista "Época" como uma das cem personalidades mais influentes do país. Ano que vem, serei tema do enredo da Imperatriz do Samba, escola de Taboão da Serra, no extremo sul da Grande São Paulo e onde nossa caminhada começou.

Não sou o único responsável pelas conquistas da Cooperifa. Somos um time de 30 pessoas. Nossa maior conquista é estimular quem não sabe ler a aprender para ter a chance de escrever seus próprios versos na vida. Quem lê enxerga melhor.

Recebemos sete prêmios pelos trabalhos na Cooperifa. Atualmente, além do sarau no Bar do Zé Batidão, evento que já reuniu 500 pessoas numa só noite, levamos a literatura da periferia para os jovens internos de dezenas de escolas públicas de São Paulo e para os jovens infratores da Fundação Casa.

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