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Minha História / Gianmaria Cominato, 73

O nonno faz história

(...)Não tenho hobby. Se você me pergunta "Sabe tocar piano"? Não sei. "Sabe pintar?" Não. O que sei é trabalhar.

(...) Depoimento a

luiza bandeira
enviada especial a taubaté (SP)

Em 1958, a Itália estava se reconstruindo, com poucas oportunidades e pouco trabalho. Eu tinha 20 anos, faltava pouco para fazer 21. Você tinha que buscar oportunidade em algum lugar ou se sacrificar na Itália.

Tinha três opções: Brasil, Argentina ou Austrália. Achei que era Brasil, mas não me pergunte o porquê. Não sabia onde ficava, não sabia que língua falava, ignorância total. Como qualquer europeu daquela época.

A Itália tinha acabado de sair da guerra. Como toda cidade industrial, Milão foi uma cidade relativamente preservada. Teve bombardeio, mas dentro do razoável.

Comecei a ir para a escola com cinco anos e meio. Minha mãe me levou uma vez e nunca mais. Eu tinha que ir e voltar sozinho. Se tivesse algum alarme durante o trajeto, buscava refúgio para me abrigar dos bombardeios aéreos. E assim foi a infância.

Depois passou a guerra, completei os estudos de perito técnico industrial e decidi ir embora. Meu pai tinha vindo para o Brasil dez meses antes. Ele trabalhava como mecânico por aqui, mas não tinha tido sucesso.

Quando cheguei, morei na pensão em que ele vivia. Fui procurar emprego, mas o Brasil é muito cruel. Minha passagem foi paga pelo governo brasileiro, mas o Brasil não é um país mãe. Você chega aqui e está abandonado, ninguém fala "Você vai fazer isso, vai fazer aquilo".

Trabalhei como desenhista e projetista, trabalhei na Arno, Willys, Ford, e as coisas melhoraram.

Casei em 1963. Aí começaram a nascer os filhos, e essa foi a caminhada brasileira.

Mas depois eu me aposentei e estava na fase do "já que". Sabe o que é isso?

"Já que você não está fazendo nada, vai buscar leite, consertar a tomada..." Já que, já que, já que.

Eu me separei e estava muito desgostoso. E eu, como imigrante, não tenho hobby, não sei fazer outra coisa a não ser trabalhar. Se você me pergunta "Sabe tocar piano"? Não sei. "Sabe pintar?" Não.

A única coisa que sei fazer é trabalhar.

E eu nunca me preocupei também. A minha formação, antes de entrar na faculdade, era de analfabeto. Tudo que fiz na Itália não tinha validade aqui. Então eu comecei a olhar para mim e falar assim: "Ou vou morrer ou vou fazer alguma coisa". Fui fazer alguma coisa.

Comecei a estudar em maio em uma daquelas escolas em que você pega a apostila, faz a prova e vai passando de ano. Fiz todo o fundamental e o ensino médio e em outubro me formei. Passei em décimo lugar no vestibular.

Entrei na faculdade com 70 anos. No começo foi estranho, mas depois não teve problema. O pessoal me achava um pouco bravo. Eles queriam me chamar de senhor, mas convenci a me chamarem de você. Até um professor me chamava de senhor.

Depois que entrei na faculdade, tudo mudou. Hoje eu sou outro homem. Vou fazer extensão com certeza, pós-graduação provavelmente sim. E muita gente da faculdade está me estimulando a continuar os estudos do TCC [trabalho de conclusão de curso] e escrever um livro.

No TCC, fui estudar as origens dos imigrantes que vieram para região de Taubaté, porque elas se perderam.

Em Bento Gonçalves (RS), chegaram 20 famílias italianas e está lá escrito, na lápide em frente à igreja. Falam vêneto até hoje. Aqui, chegaram cem famílias de uma vez só, foi uma invasão italiana. E não tem nada.

Você tem que buscar as suas origens. Quando o pessoal fala de Itália, a gente tem que saber qual Itália. Pouca gente sabe o que é Itália, o que é regionalismo.

Outro dia um cara me falou "Eu também sou italiano". E eu perguntei "de que lugar da Itália?" Ele me respondeu que não sabia, que fazia muito tempo. Muito tempo quanto? Eu tenho 74 anos. Cem anos atrás, para mim, é ontem.

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